Direito de Resposta

Com o título “Quimpostor” é publicada, neste jornal Lux Frágil de Abril de 2009, uma crónica que mostra um desalento clinicamente grave que é urgente curar e não propagar. Tão urgente que achei necessário pedir ao autor a leitura antecipada do seu texto para que pudesse exercer o meu direito de resposta na mesma edição. Para que fosse possível estar lado a lado, muito perto, partilhar as mesmas páginas. Tal era a urgência. 

Há textos que lemos e que nos enervam. Fazem-nos retorquir coisas em voz alta para uma superfície plana colocada em frente, ou ligeiramente abaixo da nossa cara. Esta acção é genericamente descrita desta maneira – “falar sozinho”. Toda a espécie de frases e interjeições podem ecoar pelas paredes até nos apercebermos. Mas apenas por breves segundos. Porque é o tempo que perdemos a falar sozinhos que define o nosso grau de loucura. Aparentemente. O autor do texto em questão, um amigo, Joaquim, deve falar muito sozinho. 

É jovem, tem um novo olhar sobre o mundo mas ainda assim deambula por perguntas velhas e desânimos dominadores. Tão dominadores que o levaram a sentar-se, a concentrar-se e a escrever um texto que pergunta, páginas tantas, “Onde está a canção que define a nossa geração?”. Amigo Quim, permita–me que o trate assim, de onde vem esse desgosto que lhe corta a visão e a capacidade de se aperceber que mesmo sendo muita (e muita de gosto duvidoso, eu sei), a produção de canções dos nossos dias vai, com certeza, dar um valente molho de “temas” que irão marcar a época em que vivemos? E, se não estou muito enganada, o próprio amigo Quim contribui, escrevendo, tocando, gesticulando, dando saltinhos, berrando para um microfone, e fazendo do mesmo ventoinha mecânica em repetidos movimentos dinâmicos, para a produção dessa mesma massa global de criação musical. 

Amigo Quim, por favor não fique velho antes do tempo. É que é assim que se começa. A praguejar que não há nada de “novo”, que andamos todos a pegar no já mastigado, que ninguém pensa no que vai definir esta década, que nada nos une, nenhuma causa comum, não lutamos por nada, não queimamos soutiens, nem pomos flores no cabelo, nem andamos com coletes castanhos às farripas, nem nada. Porque isso é que era, agora (!). Esse sentimento de união. Essa ideia fabricada do que achamos terem sido décadas passadas, e que é repetida incessantemente sempre que alguém quer vincar a falta de envolvimento (não só político ou social) de gerações recentes. Essa “visão” deveria ser emoldurada e na parede pendurada. Tem tanto pó e que ninguém o limpe, por favor. 

Rapaz Quim, arranje uns olhos novos. Ninguém se livra da pastilha mastigada. Há quem consiga voltar, milagrosamente, a dar-lhe sabor, alguns até a fazer grandes balões que rebentam na nossa cara e se colam à pele e aos cabelos. Coisa boa. É preciso é estar sempre a tentar fazer balões dessa pastilha. Olhe que há quem consiga. Olhe à sua volta. Outra vez. Mais uma. 

Amigo Quim, estou preocupada consigo. Quero “abrir-lhe os olhos”, mostrar-lhe as maravilhosas obras dos nossos tempos. Quero mostrar-lhe a geração em que participa activamente. Quero que volte a meter na boca as pastilhas mastigadas que parece esquecer que macerou com a sua própria saliva e o suor do seu rosto. 

Quero dar-lhe tarefas precisas que o levem a ver melhor, com outros olhos, a criatividade que nos envolve. Quero dar–lhe as ferramentas para que consiga ver que toda essa produção é passível de ser pensada e considerada, em diferentes contextos. E é mesmo. Mesmo a muito má. Porque o que calcifica o coração e as ideias é a prática da preguiça e a rendição. 

Há textos que lemos e que nos enervam. Fazem-nos retorquir coisas em voz alta para uma superfície plana colocada em frente, ou ligeiramente abaixo da nossa cara. Fazem-nos fazer coisas que nunca fizemos, como exercer um direito de resposta e citar coisas que não lemos no original mas sim noutros livros que já continham essa mesma citação, aplicada a outro contexto completamente diferente. Que vergonha. “Se não esperas o inesperado não o encontrarás” (Heraclito).

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