Filologia Livre da Pop do meu poluído imaginário

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This Is Not a Love Song

Jonh Lydon PIL, 1983 

 

Nasci num santuário na Extremadura espanhola depois de os meus pais terem clandestinamente dado o salto, de forma a retirarem-se discretamente do país, por motivos que ainda hoje não posso revelar.

Vem daí a minha íntima relação com a igreja, pois abro os olhos e dou de caras com um altar de talha dourada e um padre amordaçado para reeducação. Foi a única vez que os meus pais me levaram a uma igreja.

Mas ao longo da vida tive outros episódios fugazes de relação com a fé católica.

Ainda no início da minha carreira como desencriptador, fui aos EUA, a pedido de um primo meu radicado em Newark, de forma a ajudá-lo a decifrar o significado de umas cartas escritas num código estranho que ele tinha apanhado dentro da mochila do filho, num dos fins-de-semana que veio do semi-internato do colégio católico em Boston.

Foi o meu primeiro falhanço profissional. Embora fosse um código primário, com base na antiga escola da Santa Aliança, a rede de espiões criada por Pio IV, em 1566, disse ao meu primo que não era capaz, que era uma língua arcaica e que nesse semestre eu não tinha frequentado o curso por estar acamado.

Chegado a Portugal enviei uma carta anónima ao FBI e a alguns dos maiores jornais americanos. O meu primo veio a saber de tudo uns anos mais tarde.

Já John Lydon sempre soube o que quis, embora na maior parte das vezes isso acontecesse muito próximo do momento em que as coisas iam acontecer.

O que foi definitivamente o caso da descoberta da música que transformou os PIL numas das bandas mais importantes dos anos 80, e do pós-punk em geral.

E o que é que John Lydon tem a ver com a Igreja Católica?

A resposta é simples: “This Is Not a Love Song”. Não, a música não é uma declaração afectiva de Lydon à Igreja Católica. Mas surge de um encontro imediato que Lydon teve com a instituição, em pleno Vaticano no início dos anos 80, mais precisamente em 1981, ano em que o cardeal Ratzinger foi nomeado perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé (só para nos situarmos – o novo baptismo da Inquisição).

Chegado à bela cidade do Vaticano, vindo do coração da Alemanha, foi-lhe atribuído um belo escritório, numa rua com esquina com a Praça de S. Pedro. Junto com o escritório, foi-lhe atribuída também uma ajudante domiciliária, Francesca de seu nome, única mulher entre os vários secretários e administrativos da instituição a que agora o cardeal presidia. 

Em 1981, andava Lydon a promover o álbum “Flowers of Romance”, e quis o destino, que nestas coisas da fé é quem manda, que fosse parar a Roma. Concerto, bastidores, vamos sair, não vamos sair e eis que aparece no camarim uma bela italiana, morena voluptuosa com ar de quem nunca tinha entrado sequer na cidade do Vaticano.

Lydon, que já não tinha dentes para passar à frente de oportunidades destas, deixou-se ficar nos bastidores enquanto que os colegas iam andar de vespa para a Piazza Navona.

Bom, o que de íntimo se passou não interessa para a nossa história. Mas é relevante sabermos que no dia seguinte, Lydon está no edifício da Congregação para a Doutrina da Fé, e enquanto se debruça sobre a secretária para melhor subir para cima de Francesca, com um olho espreita a praça e com o outro a gaveta do cardeal, da qual saca atabalhoadamente uns papéis, no seu jeito cleptomaníaco herdado das tours dos Sex Pistols, quando tinham de roubar para comer e comprar droga porque o McLaren não aparecia e a Vivienne estava demasiado ocupada com a loja.

Lydon era um artista pop e aquilo que saiu na letra é, segundo o que sei, o texto original escrito pelo punho de Ratzinger para resumir conceptualmente a extensa lista de artigos ecuménicos sobre a posição oficial da igreja sobre uma epidemia que começava a alastrar em África mas que na Europa não se tinha ainda ouvido falar. 

Era uma espécie de um mantra religioso, numa cadência repetitiva e hipnótica capaz de inebriar até os espíritos menos crentes.

Mal põe os olhos no texto, Lydon salta da secretária com a desculpa de ter contraído uma lombalgia, deixa Francesca a orar sozinha, salta para a vespa e só pára em Londres, no seu estúdio.

Em 1983, surgia o hit “This Is Not a Love Song”, que Lydon direccionou para o alvo preferido da pop que protesta – os defeitos do capitalismo e a alienação da sociedade de consumo. 

Mas a verdade é bem outra. Este era um texto sobre a SIDA e o cardeal não queria deixar os seus créditos por mãos alheias. Era preciso um manifesto de força que atestasse toda a discordância da igreja face a uma doença daquelas, que afectava os pobres, os homossexuais, as prostitutas e na altura milhares de africanos que não se enquadravam em nenhuma destas categorias (agora são mais 22 milhões só na África subsariana). Sendo um homem de visão, o cardeal achou que mais valia prevenir do que remediar e deixar logo bem clara a posição da igreja. Uma visão que mantém, a avaliar pelas entusiásticas palmas da mulher do presidente dos Camarões, a queridíssima Chantal (“a saint of style”, nas palavras do Boston Globe) que envergava um belo conjunto rosa a fugir para o choque composto por um chapéu à bispo com tendências étnicas, cheio de cruzinhas de Cristo, que contextualizaram as sábias palavras do Santo Padre, que resumido dizem que o preservativo não só é pecado como aumenta o risco de contrair a SIDA. A mesma visão que o levou a classificar os índios do Brasil como “arrogantes e desrespeitosos”, purificados apenas pela religião católica, ou que o fez participar activamente na excomunhão dos médicos que realizaram um aborto numa rapariga brasileira de nove anos que tinha sido violada. Ah, a mãe também foi excomungada. Ah, o violador não.

Mas pronto deixo-vos com a análise de um exemplo prático e vivo dessa eloquência:

This is not a love song

This is not a love song

This is not a love song

This is not a love song

This is not a love song

I’m crossing over

This is not a love song (repeat 6)

 

O texto começa pela parte repetitiva da reza, de forma a que o povo, ignorante, perceba de que é que se está a falar. Isto não tem a ver com amor cristão mas sim com a moral católica, que é muito mais importante. O “I’m crossing over” está lá para tornar isso claro.

This is not a love song

Happy to have

Not to have not

Big business is very wise

I’m crossing over into enterprise

 

Depois, a exemplo das antigas óperas, a evocação aos deuses que desde sempre protegeram a instituição católica, os poderosos, os ricos, os escolhidos. 

This is not a love song (repeat 4)

Oh no

 

Volta a parte repetitiva da reza, para aqueles que estão nas filas de trás e tendem a adormecer.

I’m adaptable

Now I like my new role

I’m getting better and better

I have a new goal

I’m changing my ways

Where money applies

This is not a love song

 

Aqui determina-se qual a conduta moral que os governos e as grandes companhias farmacêuticas devem ter face ao alastrar da epidemia. A esta distância pode-se dizer que tem sido cumprida à regra.

This is not a love song (repeat 4)

 

De novo o mantra. Por esta altura há já gritos de convulsões na plateia e o crescendo emocional atinge o seu pico.

I’m going over to the other side

I’m happy to have

Not to have not

Big business is very wise

I’m inside free enterprise

 

De novo a evocação aos deuses, de forma ainda mais abertamente dedicada.

This is not a love song (repeat 4)

Not television

Behind the curtain

Out of the cupboard

You take the first train

Into the big world

Are you ready

To grab the candle

That tunnel vision

Not television

Behind the curtain

Out of the cupboard

 

A última estrofe é uma espécie de profecia e de desafio a África: “Are you ready to grab the candle” – ireis viver sempre na pobreza; “You take the first train into the big world” – OK, vocês até podem vir à Europa mas atrás da cortina, e cada qual no seu sítio, porque essa cena da SIDA dá mau aspecto.

Happiness and sunshine

This is not a love song (repeat 6)

No no

No no

No no

 

O fim é apoteótico, marcado pela interrupção do mantra pelas palavras que caracterizam o povo africano numa espécie de Adeus Pré-Papal levando a audiência a espumar-se de tamanha elevação.

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