O Outro

outroCapítulo anterior: O quotidiano de Zé Miguel: o que se passa na cabeça do herói. / A caminho do trabalho, encontra o Pedro e conta-lhe que foi convidado pelo Nuno Paz para tocar com ele no Lounge. / Pedro acompanha-o à Capela, onde aparece a Adriana. / Falam do Sónar e convidam o Zé Miguel para ir com eles.

(o capítulo anterior pode ser lido em blog.luxfragil.com)

Folhetim de Maria Antónia Oliveira & António Néu

Capítulo VIII

“Run away”

— Ó amor, devias deixar isso da noite.
É uma canseira e não dá nada, não ganhas dinheiro de jeito… E eu também não estou nada bem lá na loja! Tenho andado a pensar num negócio… que tem a ver com a moda…

Carina, em pé, desapertava o strap-on Heart Fetish Fantasy. Enquanto lavava carinhosamente o dildo, na casa de banho, continuou:

— Sabes, estive a pensar em montar um negócio de unhas de gel. Aqui no Bairro Alto era o ideal!

Voltou ao quarto e lançou os braços em volta de Zé Miguel, que fumava um cigarro, exausto.

— É só preciso uma banquinha e um aparelho… um kit! Sei de um à venda por 120 euros. E dão o curso de iniciação!

Péun péun tum tum tum tum Sometimes I feel I’ve got to Run away I’ve got to Get away From the pain you drive into the heart of me tum tum tum tum o que é que ela está pra aqui a dizer? Hei-de pôr esta no set? tum tum tum tum Once I ran to you Now I’ll run from you… Unhas de gel?
Ela disse unhas de gel?

— Zé Miguel!! Não estás a ouvir o que eu te digo? Onde é que vais?

— Carina, tenho mais em que pensar! Ou já te esqueceste que vou pôr música logo à noite? Unhas de gel? Não sejas tosca! Achas que aqui alguém usa disso? Onde
é que eu pus a merda do CD?…

— Ó fofo, não estejas nervoso! Eles vão adorar! E eu vou lá dar-te uma forcinha! Já combinei com a Cati.

— Ai ela também vai?! Hum… Ouve lá isto. Achas que esta música é muito gay?

Pfff… sabe lá ela. Unhas de gel… pffff. Ela sabe é de dar fodas, tum tum tum tum I give you all a boy could give you Take my tears and that’s not nearly aaaalllll – ooohooohoooh Tainted love péun péun Tainted love tum tum tum tum sim, acho que esta fica bem, gosto do tum tum tum.

De olhos fechados, Zé Miguel dançava todo nu no meio do quarto. Quando a música acabou e abriu os olhos, viu, em primeiro lugar, à porta, a Tânia, ainda de mochila às costas. Atrás dela, a espreitar e a rir-se, estava o Bernardo.

— Tânia!!! Desculpa, não te ouvi entrar!

— Pudera! Com esta música cheesy aos berros! Ouve-se na rua, Zé Miguel! Até pões o travesti a dançar! É isto que ouves no Finalmente? Ihihih! Então, estás bom? Dá cá um beijo! Mas veste-te primeiro, que temos visitas.

Xii, agora chegou esta! Ganda merda! As calças… onde estão as calças? E a Carina, onde é que ela se meteu?

— Tânia, there’s a naked girl in the kitchen! Uauuu…

— Isto é vosso?

Zé Miguel olhou. Era o Bernardo, saído da casa de banho de braço estendido, com o strap-on na ponta dos dedos a abanar tristemente.

— Ah sim, é da Carina! Quer dizer, é meu!!

— Hum… estou a ver! E precisas de vaselina ou de viagra? Ó Tânia, isto por aqui anda animado…

— Zé Miguel, isto é a tal Jennifer? Bem, vamos ali mostrar o Adamastor aos nossos amigos e já voltamos.

A porta da rua bateu e a casa ficou em silêncio. Zé Miguel sentou-se na borda da cama, a olhar as unhas dos pés. Procurou o telemóvel e não o encontrou. Não sabia bem a quem ia telefonar. Levantou-se novamente e acendeu um cigarro. Abriu a janela. Ainda fazia frio. Voltou a fechar.

A Carina entrou no quarto, nua ainda, com os olhos brilhantes de despeito, os braços cruzados por baixo das mamas empinadas:

— Ai esta é que é a Tânia? E não sabias apresentar-me?

Zé Miguel fumou outro cigarro, olhando-a a recolher a roupa com passadas ruidosas pelo quarto.

— Trataste-me como se eu não existisse! Sou lixo? É? E eu que abdiquei de tanta coisa por ti! Não dizes nada?

— Viste o meu telemóvel?

— Vai à merda!

Mas onde é que eu pus o telemóvel? Tch tch tch tch No you never cried to them Just to your sooooouuuul!! Run away, turn away, run away, turn away, run away tch tch tch tch tch tch tch tch Run away, turn away, run away, turn away, run away Aaaaaahhhhhhhhhhhai!!

A porta da rua voltou a bater, com força.

— Zé Miguel, não estejas nervoso. Ainda são dez horas! Shanti.

— Dez e meia!! E o Nuno não responde ao telemóvel! Começamos às onze!

Iam dentro da carrinha da Tânia e do Bernardo a descer a rua do Alecrim, a caminho do Lounge. O Frank fazia charros; a Jimmy abanava a cabeça ao som das novas malhas psicadélicas trazidas de Goa.

Porra, o Nuno não atende! Esta música não me deixa pensar, estes gajos são doidos. E estes dois que já têm carrinha e tudo? Pfff… Telemóvel!!!

— Está? Sim! Tânia, põe aí isso mais baixo. É o Nuno!!

— Zé Miguel! Desculpa lá, pá, ainda não te ter dito nada! Eh pá, só agora é que estou em condições de falar… Eh pá, nem imaginas! Lembras-te que eu ia ontem tocar a Setúbal?

— E então? Já estás a chegar? Trazes o disco que te pedi?

— Eh pá, Zé Miguel, estou muito mal, não posso ir. Deram-me lá uma pastilha marada. Está aqui a Eva a fazer-me um chá de cidreira, não consigo ter nada no estômago. As pastilhas agora andam todas maradas!

— Tu não me digas! E agora?

— Agora tocas tu. Já falei lá para o Lounge e eles já sabem. Não te preocupes, vai correr tudo bem! E olha… vai em frente e não te rales muito com as passagens…

Desligou! Estou feito. Ai minha mãezinha! Eu sozinho? Estou fodido. O melhor é nem dizer nada a estes… Vinham-me já com o pensamento positivo… estou fodido! Ainda bem que trouxe os discos todos!… Cinco horas… sozinho! Estou feito. E as passagens? Bem, vamos lá a isto! Ai que dor de barriga! Hummm…vou começar com aquela que
a Adriana me aconselhou – aquela com que o Joakim começou no Sónar à tarde… Boa, é isso mesmo. O gajo que grita muito Pom pom pom pompompompom pom pom I put a spell on you Because you’re mine

Não teve tempo para ir à casa de banho, nem para responder à Carina, ao balcão com a amiga. Não teve tempo para pensar. Já não dava tempo.

Pom pom pom pompompompom pom pom I love you I love you anyhow And I don’t care if you don’t want me I’m yours right now pom pom pom pom – pom pom I put a spell on you pom pom pom pom Because you’re mine miiine miiiiine uh oh you’re mine. Esta foi boa. E a próxima ainda vai ser melhor! Vão ver! Eia tanto botão! É fascinante: tanto botão e eles sabem mexer em todos! A ver se não me engano…

O Lounge estava cheio. Eram as férias da Páscoa. Uns erasmus acotovelavam-se ao balcão, treinando o português e pedindo mais cervejas do que as que conseguiam suportar. A Carina bamboleava-se diante da mesa do DJ, com a amiga, fazendo-se muito disponível para o mundo, lançando em redor uns olhares amanteigados.
Zé Miguel olhou-as sobressaltado.

Bem, tenho que me concentrar. Onde é que andará a Tânia e os outros? O Pedro disse que vinha… Bem, não está a correr mal. “Small Town Boy”? Hummm, acho que sim. Afinal é o que eu sou! Tch tch tch tch Mother will never understand Why you had to leave Tch tch tch tch Run away, turn away, run away, turn away, run away péun péun péun péun péun. E agora? Tenho dois minutos, qual é que é aquela faixa? A terceira? Costuma ser a número oito… Um minuto e vinte e cinco!… Não é esta. A quinta? Cinquenta e quatro segundos, depressa depressa. Foda-se, também não. Ah, é isto mesmo, tum tum tum, mais para a frente tum tum tchk tchk tchk. Boa, boa! Sete segundos já não dá!!! Que se foda, vai à electroclash!

Olhou para a pista. A pista olhou para ele. Houve um silêncio, num décimo de segundo. A música disparou e a pista levantou os braços. Sentiu-se o frémito da dança. Ao fundo grunhiram, em aplauso. Zé Miguel levou a mão ao bolso, tirou um cigarro
e acendeu-o – o primeiro desde que tinha chegado.

Sentiu bater no vidro, atrás de si. Era a Tânia, a fazer umas sinalefas de apoio, e a apontar para a carrinha, estacionada no beco. Zé Miguel acenou e riu. E seguiu o olhar trocista dela, para dentro da sala: mesmo em frente dele, a Carina, langorosa, encaixava o rabinho na zona púbica da Jimmy, que arredondava os olhos para o céu. Mas, no caso, o céu não era o limite: era mesmo ali, na pista da dança.

— Eia, man! Isto está animado! Estás sozinho?

— Espera, espera, estou aqui a fazer uma passagem!

— E já fazes passagens e tudo!?

Era a hora do Pedro descer da Bica. Atrás dele, sorrindo, a Adriana.

— Pede-me um vodka com maçã, diz que
é para mim. Ainda não consegui sair daqui um minuto!

Mergulhou novamente na profusão de CDs e vinis espalhados.

Esta, esta! Isto agora vai ter de bombar!
A Adriana… trinta e oito segundos, play: tum tah tum tah tum tah Joy joooooyyyyyyyyy I don’t wanna play your game Joy & pain You think it’s all the same I don’t wanna play your game Of joy & pain tum tah tum tah tum tah Eia, entrou mesmo bem!

Perto das quatro da manhã, o Lounge estava à pinha. O set tinha sido um êxito e Zé Miguel nem sabia bem como. A Adriana aproximou-se. Tinha-a visto a dançar ao fundo da pista.

— Olá! Muito bem, muito bem! Estou farta de dançar!

— Oi! Olha, e comecei com aquela que me deste, sabes?

— Então vais acabar com esta! Liga aí o meu i-pod. É MP3 mas está a 320. Anda!
É música de quando tu nasceste!

Zé Miguel obedeceu. Ouviu um teclado, um baixo poderoso a sobrepor-se-lhe e uma voz feminina desdenhosa: Why don’t we… Why don’t we… Why don’t we…Take me away Release me from the cage Free me from the pain And let me feel no shame. A canção falava da dor, da libertação, da vergonha e da fuga. Deitou um olhar desconfiado e fugaz à Adriana. Let’s go free… yeah Let’s go free… yeah Runaway.

Era o final. Zé Miguel estava exausto e feliz.

— Ó puto, estiveste bem! Conseguiste agarrar a pista! Curti muito o começo, com o Screamin’ Jay Hawkins! I put a spell on you… Sim senhor, tu fazes-te!

— Conheces o Francisco Peres? Trabalha no Lux. Esteve a dizer-me muito bem do teu set! — disse a Adriana.

Zé Miguel estremeceu. E resolveu estar
à altura:

— Eu, como DJ, desenvolvo uma tendência natural para o inclassificável.

— Pois. Temos de falar. Se calhar era giro ires lá tocar um dia… lá para Agosto… Temos uma rubrica que é o Lugar aos Novos…

— Hã? Era óptimo! Eu não sei… Eu gosto muito… Conheces o…

A Adriana acudiu:

— Quem é que está a tocar lá hoje? Embora lá, Zé Miguel, eu dou-vos boleia. Arruma os discos, despacha-te.

Zé Miguel despachou-se.

Isto correu mesmo muiiita bem! Tenho de contar ao Nuno. No fundo, até tenho sorte! Tocar no Lux! Não acredito! Ele estará
a gozar comigo?

— Zé Miguel, onde é que vais? Eu vou para casa com a Cati…

— E eu importado.

(Continua)

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1 Response to “O Outro”


  1. 1 susana

    ha ha ha ha…..

    acho que humor português e do melhor, especialmente se já estas há algum tempo fora…..

    E a minha primeira vez aqui…… mas seguramente que volto…..

    brilliant… : )

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