O Outro

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Capítulo anterior: Após várias investidas da Carina, Zé Miguel tem uma recaída e volta a dormir com ela. / Continua a dar-se com a Adriana e o Pedro, com quem planeia ir ao Sónar, em Barcelona. / Mas não é o único: a Tânia, a Carina e a amiga, o Nuno Paz e o poeta, cada um por si, tencionam ir ao Sónar. / Depois de uma noite no Lux, reencontra o poeta na varanda. (o capítulo anterior pode ser lido em blog.luxfragil.com)

Folhetim de Maria Antónia Oliveira & António Néu

Capítulo IX

“Illusion is the first of all pleasures.”

— Então, onde é que se meteram? Já estou na porta 10!
— Mas, ó Zé Miguel, ainda faltam duas horas, man, vou sair agora de casa!
— Ainda estás em casa?! Olha que perdemos o avião!
— Espera aí no bar, vai bebendo uma cervejinha…
Zé Miguel desligou, descontente com a demora do Pedro e da Adriana. Conformado, e com medo de parecer parolo (nunca tinha apanhado um avião), dirigiu-se ao bar próximo. A meio da segunda imperial, ouviu um sotaque brasileiro:
— Oi minino!!! Que é que cê está fazendo aqui? Zé Miguel, não é mesmo?
A um primeiro olhar, não reconheceu a cara sorridente e tumefacta que se chegava a ele. Sim, era mesmo ela! A Suely do Finalmente! Sorriu-lhe, um tanto embaraçado de a encontrar ali, de dia, com as maçãs do rosto a rebentar, de inchadas, e as longas pernas metidas nuns leggings de licra preta, muito discreta.
— Olá. Vou para Barcelona, para o Sónar. Sabes, o festival…
— Cê vai em Barcelona? Então vamos junto! Ai minino, cê sabe que eu agora vou tentar minha sorte em Barcelona! Aqui já não tava dando não. Tenho uma amiga lá, a Rancia de Jordânia… ela me propôs fazer um
showzinho na Discoteca Metro. Cê conhece? Todo o mundo conhece! É super-chique! E estão precisando lá de uma Cármen Miranda! O Tico-Tico tá Tá outra vez aqui O Tico-Tico tá comendo meu fubá O Tico-Tico tem, tem que se alimentar Que vá comer umas minhocas no pomar! Ahahahah, vai ser a maior gozação! Cê tem de ir ver, minino, vai amar!
Estupefacto, Zé Miguel olhava para ela, a fazer passos de dança miúdos em frente dele, enquanto cantava. O barman, que era brasileiro, piscava-lhe o olho e batia o ritmo com o shaker.
— Eh lá! Isto parece o Morocco Club! – Era a Adriana que chegava, curiosa e de olho brilhante.
Quando finalmente se apeou do autocarro na Praça da Catalunha e desceu as Ramblas, Zé Miguel ainda cantarolava O Tico-Tico ti O Tico-Tico tá, sob o olhar enternecido da Adriana, que tinha feito amizade instantânea com a Suely no avião – “Ai, esta tua amiga é o máximo! Onde se conheceram? Zé Miguel, tu és uma fonte de surpresas!…” Zé Miguel ficou contente.

Barcelona, segundo dia: Comprei um moleskine. A Adriana disse para eu fazer uma espécie de caderno de viagem, e ir escrevendo o que se passasse. Ela disse que era provável que me esquecesse do que ia viver, e também que eu fizesse sempre um esforço para ir registando. 

Barcelona, terceiro dia:
Hoje fomos à Fundação Miró ver uma exposição sobre arte e poesia, dum gajo qualquer misturado com o Miró. Depois descemos pelas escadas rolantes até à Praça de Espanha. Ao fim da tarde, fomos beber cervejinhas à esplanada do Born (acho que é assim que se escreve). Esta cidade é brutal! Agora estou a escrever sentado numa mesa dum bar arte-nova ao pé das Ramblas, o London Bar. É só cromos à minha volta! Parece que o Pedro quer ir ao Moog, que é mesmo aqui ao lado. Dizem que
é um clássico! Lá vamos! Amanhã começa o Sónar! Já fomos buscar os bilhetes!

Barcelona, quarto dia:
Isto excede as minhas mais loucas expectativas! Gostei de tudo!!! Vamos lá a ver se consigo escrever isto na forma que a Adriana me aconselhou:
1. Almoço no Quim de la Boqueria, no mercado a meio das Ramblas. A Adriana é que encomendava e tratava de tudo – aquela mulher sabe muito!
2. Demos uma volta pelo Raval, fomos à livraria da Adriana e a uma outra onde o Pedro nos levou, só de design! Até fiquei outra vez com vontade de ser designer!
3. Mal entrei no Sónar, passou-me logo a vontade! Que ambiente! Que gente linda! E todos tão simpáticos! Aquela sensação de estar ali à entrada, com o baixo a bombar ao longe, à nossa espera! E o live do Luomo à tarde no palco principal! Uau!
Acabei por me perder da Adriana e do Pedro uma grande parte da tarde, mas voltávamos sempre a encontrar-nos. E eu na maior! Eles andavam um bocado fora (não sei o que tinham andado a tomar…), mas eu não me perdi. Apanhei uma grande moca com uma coisa líquida que a Adriana me deu, e dancei descalço no Sónar Dôme. Conheci umas bifas de Brighton muito fixes. Não conhecia ninguém que estava a tocar, mas era tudo muito bom. Tinha o folheto com a programação, mas não conseguia focar! Amanhã vou tentar ser mais atento. A Adriana diz que o que eu gostei foi de um tal Mulatu Astatke, da Etiópia. E vi o Nuno Paz, com o Nexter! Não saíam do Sónar Village, a mamarem tudo duma editora chamada Ghostly International! Mas aquilo era muito melancólico, o Sónar Dôme é que estava bom! Hoje à noite há James Holden no Loft, mas é preciso pagar e já vi no Lux. Vou ficar a descansar, que amanhã é todo o dia. Fartei-me de andar, perdi-me e não conseguia dar com a casa da Catarina! Perguntei a uns polícias, mas eles não falavam inglês. Andei três horas às voltas, numas ruas cheias de árabes e putas, e sem saldo no telemóvel! Acho que foi por ali que prenderam uns gajos da Al–Qaeda… E de repente estava mesmo aqui ao lado! Foi cá um alívio! Bem me dizia o Pedro para eu comprar um mapa.

Barcelona, quinto dia:
São 10 horas da noite, e estou num restaurante no Raval à espera do poeta. Está cá numas conferências de poesia, e combinámos ir ver a Grace Jones juntos – já desde aquela noite no Lux…
Hoje consegui perceber melhor o que andava a ouvir. Quase não saí do Village, que é o palco maior ao ar livre. Está-se lá tão bem sentado na relva a beber cervejas! São um bocado caras. E bebem-se muitas, com este calor! Comprei um leque, um abanico, como eles dizem. Cá os homens também usam.
Comecei por ir ao Dôme. Estavam os Muhsinah, uns ingleses em concerto a tocar soul. E não é que dou de caras com a Carina!!! Eu nem queria acreditar! Depois de tudo o que lhe disse em Lisboa! Lá estava com a amiguinha a dançar o soul e a abanar o rabinho. Disse que lhe ia buscar umas cervejas e pirei-me. Livra! Com isto, não voltei ao Dôme.
No Village, era o showcase da BBC Radio. Bem, vi uma banda inglesa fantástica, os La Roux, com uma miúda linda a cantar estilo anos 80! A seguir, foi Bass Clef, que é dubstep com metais. A ver se vou conseguindo apontar estes nomes, para depois poder dizer ao pessoal lá em Lisboa… Mas é muito difícil, porque é tudo tão frenético, e tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo! A certa altura, apareceram o Nuno Paz e o Nexter que iam ver o Micachu and The Shapes. Fui com eles para uma cave que eu nem tinha ainda dado conta que existia!
Hoje à noite é o James Murphy! E o Buraka! E o Erol Alkan! Conheço mais gente na programação da noite.

Barcelona, sexto dia:
Acabei de acordar e ainda estou com as pernas a doer, de tanto dançar e andar. Aquilo, à noite, é tudo enorme! Mas é a maior loucura! Está tudo completamente fora, e a divertirem-se que nem danados! E os espanhóis são loucos! Fartei-me de falar com desconhecidos, todos com uma grande onda e simpáticos. Os catalães adoram os portugueses! Encontrei um galego na casa de banho que era fã do Zeca Afonso! E agora tinha descoberto a electrónica!
Eu já não tenho bem a noção do que vi primeiro e depois, e a que horas foi. Sei que a Grace Jones deu um espectáculo extraordinário. O poeta embasbacava para ela, de língua de fora, e ia dizendo que ela está um bocado diferente. Aquele poeta não tem cura: só queria ouvir o “Libertango”, e falar-me do Piazzolla e de Buenos Aires! No meio daquela multidão, vi a cabeça da Suely, lá mais à frente. Devia estar com as amigas travestis espanholas, se calhar a preparar um número Grace Jones…
O James Murphy, como de costume, arrasou. É claro que fui ver os Buraka! Deixaram o público doido. Um espanhol, que dançava furiosamente ao meu lado disse-me que estavam todos “de patas arriba!!!”, e que os Buraka davam “ganas de bailar!” Fiquei orgulhoso, disse-lhe que era português. Deu-me um beijo.
Às cinco da manhã, fui ver o Agoria. Tinha combinado com a Tânia. Ela afinal veio, e o Bernardo foi para o Fusion e chatearam–se por causa disso. Encontrei-a ao pé do bar, com a Jimmy. Estavam as duas deslumbrantes, devia ser por estarem sem os homens. Fizeram-me uma grande festa e deram-me a beber duma garrafa de água que sabia pessimamente. Fomos lá para a frente. Mas aquilo depois complicou-se. Não sei se foi da moca, se do cheiro dos cabelos ruivos dela, comecei a sentir-me muito próximo e muito cúmplice com ela. A certa altura, já estávamos aos linguados – e sabiam tão bem! A Jimmy, ao lado a dançar, ria. Se pudesse, também lhe tinha dado uns beijos… elas pareciam tão disponíveis. O problema foi que, quando voltei da casa de banho (que era longe como a merda), elas já não estavam no mesmo sítio. Ou então fui eu que não consegui atinar com o sítio onde tínhamos estado. Aquilo é tão grande! Bem, tive de voltar sozinho, no autocarro, em pé toda a viagem, com uma data de bifes a praguejar e a cair para cima de mim. Agora estamos à espera da Adriana e do Pedro para irmos outra vez para lá, todos, com a Catarina e Luísa. Eu precisava de dormir mais um bocadito, mas pronto.
Zé Miguel fechou o moleskine, zonzo do esforço da escrita, e intimidado pela entrada da Adriana na sala.
— Então, chavalo, esse diário de viagem, está a fluir?
— Ai, Adriana, isto de escrever dá muito trabalho!
— Pois, é para veres! Pensas que é a mesma coisa que pôr discos?
Lá foram, arrastando-se pelas ruazinhas do Raval até começarem a ouvir a batida. Zé Miguel começava a sentir-se um barcelonês – já tomava a dianteira e indicava o caminho e falava espanhol no café (“un café suelo, por favor!”), todo ufano e à vontade, sentindo-se em casa, planeando muito abstractamente instalar-se naquela cidade:
Eh pá! E agora como é que eu vou voltar para Lisboa? Fixe, fixe, era vir viver para aqui! Mas como? Estudar som? E a minha mãe, como é que eu a convenço? E o pai, o pai? Fuck… fuck. Tenho a impressão de que a Adriana me surripiou o moleskine… quando eu fui à cozinha fazer café, e voltei, já não estava lá em cima da mesa… deve querer ler o que eu escrevi… e utilizar na crónica dela para o jornal do Lux?! Eheheheh….
Vaguearam pelo recinto durante o resto da tarde. Zé Miguel descobriu um cantinho na relva sintética, onde várias pessoas dormitavam, dispostas em tetris. Deitou-se também, e passou pelas brasas, embalado pelo som do showcase da Ed Banger. Acordou com os suaves pontapés do Nuno Paz:
— Então vieste para aqui dormir?! És mesmo totó! Vamos, puto! Está na hora de ir para a Fira ver os Animal Collective!
Estava a começar o concerto quando o já extenso grupo de portugueses chegou. O Nuno Paz era amigo do Panda Bear, que vivia em Lisboa, e eles sentiam-se quase como se fossem aplaudir portugueses. Mas o grupo desagregou-se ao fim de meia hora: uns queriam a Fever Ray; a Adriana falava de um Rob da Bank que tinha escrito um livro e ela queria muito ver; outros não se calavam com os Orbital. Zé Miguel, descansado com o soninho da tarde, queria ver tudo. Tinha sede. Na falta de cerveja, bebeu da garrafa que a Adriana trazia à cinta, “Ai! Não bebas tudo, Zé Miguel!!”
Foi andando atrás das manas suas anfitriãs. Era um longo caminho até à Fever Ray. Pelo meio, começou a sentir um calor interno e os músculos a relaxar. Bocejou.
— Ahahah! Estás outra vez com sono? Isso não é sono, não! Ahahahah!
Zé Miguel riu muito. Tinha mesmo muita vontade de rir. Sentia uns cúmulos de felicidade alternados com uma calma que o deixava absorto, de olhar perdido.
— Anda! Vai começar!
Tum tum tum tum tum When I grow up,
I want to be a forester Tum tum tum tum tum Run through the moss on high heels That’s what I’ll do, throwing out boomerang Tum tum tum tum tum Waiting for it to come back to me Tum tum tum tum tum
A Fever Ray era gira. Zé Miguel foi andando até se aproximar do palco. Passou pela Tânia, mas não conseguiu percebê-la – a voz e a cara confundiam-se com a da cantora. Perdeu a noção do tempo e do espaço.
A certa altura, deu consigo noutra sala, enorme, onde lhe parecia que já tinha estado. Perguntou para o lado, em português, quem estava a tocar. “Una leyenda: Orbital!!! Mira las pantallas!” Olhou os ecrãs, esquecido de dançar. Acendeu um cigarro. O sabor acre e agradável, o fumo lento fizeram-no descer à terra. Julgou ver a Carina e o Kaló na zona do bar, muito abraçados. Gostou do que viu. Resolveu ir ver o que se passava nas outras salas. Precisava de ar livre, de céu por cima de si.
Após o que lhe pareceu uma viagem infindável, chegou à sala do fundo. Amanhecia.
As caras tornavam-se mais nítidas. A multidão ululava ao som de Carl Craig. Apeteceu-lhe finalmente o sabor da cerveja. Furou até ao bar, agora com um passo mais decidido, como se tivesse acordado de um sonho. Mas a luz da aurora provocou-lhe um refluxo. E começou a ouvir um acorde de órgão familiar, de uma música antiga que a mãe tinha lá em casa, We skipped a light fandango Turned cartwheels across the floor I was feeling kind of seasick, But the crowd called out for more. Voltou-se para o palco, à espera de ver os Procol Harum. Eram mesmo eles! A música falava do moleiro que contava a sua história, e do quarto que zumbia enquanto o tecto fugia, e das dezasseis virgens vestais que partiam para a costa. Eram mesmo eles!!

FIM

sindicato.biz/o_outro

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