As cabeças de Amadeo

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Sabe a madrugada ventosa e terra húmida, a passeio sob os carvalhos e a galope de cavalo, Amadeo (1887-1918) sabe a “A” maiúsculo com um “e” encolhido a querer acrescentar e mais e ainda e depois e além disso. Segundo as leis da gravidade, devia o “e” descer pelas encostas do “A”, mas sobe a galope para ver o horizonte limpo e frio mal nasça o sol. Amadeo, “pintor avançado” ou “bizarro colorista”, sabe a começos, sabe de olhares primeiros e soube descobrir cores alegres e sinistras. Amadeo sabe bem.
Quando ainda não sabia reconhecer os nomes recortei de um jornal a minúscula reprodução da tela “Galgos”, da qual, por não saber de nomes, desconhecia a celebridade. Durante anos conservei por perto, em paredes e cadernos, aquele fragmento amarelado onde vibravam cores por adivinhar: o contraste preto e branco da atenção dos cães, a maquilhagem mascarada das lebres suspensas, as subtilezas das montanhas, um laranja a prometer luz, as massas do céu num verde que talvez seja azul a romper. Não sei agora quando a cor me atingiu, mas lembro-me de ter passado não há muito uma pequena vida face a face com a cena a dois palmos do chão vencendo o peso e a circunstância. Fui interrompido pelo segurança do museu. Desconheço o que me atraiu na imagem do velho jornal, mas posso inventar: foi a suspensão. Nada há de mais prometedor, e portanto adolescente, que esse exacto momento em que o olho se concentra num ponto, os músculos se retêm para nos manter suspensos, prestes a, uma vez marcados com as tatuagens do combate, nos atirarmos que a vida é toda para diante. Os galgos e as lebres, caçador e presa, estão ambos hipnotizados pelo momento adolescente da partida. Nunca uma cena parada teve tanto movimento, eis a verdadeira natureza morta. Amadeo sabe a pontos de partida e a vida pintou-o como adolescente, no instante em que se erguia para se atirar.
Será a morte um segurança de museu?
Sou livre de pensar que os galgos preto-e-branco e as lebres riscadas começam a vislumbrar naquele instante a paisagem de rostos e cabeças e máscaras com que o pintor ilustrou a madrugada do século XX. E lhe adivinhou o corpo do dia, os massacres da manhã como as violências da tarde e os horrores da noite, que o século de Amadeo foi de guerras e holocaustos, foi de morte e terror. Não pintou cenas dessas, mas no seu território, que era o do indivíduo, há reflexos do que viria a ser o futuro todo. Por isso a sua cabeça leva por título vanguarda.
Sei de outra tela que leva um título longo começado por promontório cabeça índigo onde mora a perplexidade dos sentidos desfazendo-se sobre o ruído colorido das coisas e dos números e das cores. As orelhas são buracos de segurar para abanar, de pendurar nos muros das cidades com que revestimos os cafés. As bocas fazem, uma após outra, aquele oh! redondo e fatal do destino. Não gritam, pois isso está reservado para os olhos, berlindes que rodam sobre si e cruzam latitudes e longitudes, caindo nos degraus do inferno, subindo ao farol do céu. Estamos rodeados de lugares-tempestade e isso revela-se nas cabeças. Esta é litoral, ali outra que se chama oceano e os nomes têm peso ainda que seja sem título. Esferas de mundos perdidos, tecidos bordados dos cinco continentes, as cabeças soltaram-se e andam a rebolar pelos sítios recolhendo terras e ares e fogos. Ardem em verde soturno de velha de lenço que se inclina para mirar o chão que não mexe. Somos feitos de restos de cor, de fragmentos de luz, de algodões de sombra e isso vê-se tão bem nas cabeças. Tanto risco e traço, tanta força e fraqueza. Moram casas nos rostos, mas nelas desembocam ruas e os quartos são praças com janelas para o chão e portas no tecto de cair para cima. Possuímos as mais distintas e sanguíneas geometrias, as mais díspares texturas, os mais loucos motivos, triângulos e rectângulos de pano de pele crestado pelo sol dos pinhais, tecido pela água e pelo trigo, pelas mãos dos salgueiros dançando. São bulas de medicamento onde se misturam contra-indicações com composição e posologia, estamos para aqui decompostos em cicatrizes e rugas e esgares que devem ser tomadas de hora a hora para curarmos o mal do século que ainda é nosso apesar de ter pertencido a A, fosse de Almada ou Amadeo. Afinal, galgos e lebres subimos ao promontório do A para melhor nos desfazermos. Atirando-nos para diante?

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