Ler, outra coisa

Da esquerda para a direita e em contínuo, de cima para baixo. Página a página, entre as mãos. Costumava ser assim, mas hoje com a proliferação de novos suportes de leitura, o acto de ler tem cada vez menos um princípio, meio e fim. Não há tempo para contemplações. É preciso velocidade. O título e esta “intro” estão garantidos…

Estas primeiras linhas também, quase de certeza. Acontece muitas vezes ir facilmente por aqui fora e ler mais uma ou duas linhas de texto, seguido, de forma contínua. É o princípio, está bem no topo da página, abaixo dos headers. Depois, se calhar, dou uma olhadela no lado esquerdo da coluna, primeiras palavras, aqui e ali, e leio mais um bocadinho na horizontal, porque até me interessa. Se não andei com o rato antes, faço-o agora e os meus olhos fazem uma vertical, pela esquerda, pelo resto do conteúdo. “Marcam-se” palavras, que é como quem diz, lêem-se palavras soltas do texto que nos parecem chave e pequenos conjuntos de palavras para obter um bocadinho mais de sentido. É preciso ser rápido e eficiente.
Ah, já percebi, isto deve ser… Há mais, espera, tem um vídeo, quanto tempo tem? Agora não. E a foto dele, então é este gajo. Estes links têm ar de serem bons, pronto é só para o site oficial. Que chatice estes gifs animados e pop-ups, adeus. Ui, espera lá, isto interessa-me. E pronto, já não estamos nesta página, abrimos outra tab, retomamos a “leitura”. Ler a totalidade de uma página digital, quanto mais se contiver muito texto, quase nunca acontece.
Comecei a notar que a forma errática como lia páginas na internet não podia já ser assim tão aleatória. Alguma parte desta prática deve ser um sistema. De tab em tab, passo os olhos rapidamente percebendo o conteúdo apresentado – seja texto, imagem, vídeo, som, tudo. Faço refresh, abro, clico, salvo, recolho informação para o desktop. Tenho medo de perder coisas e deixo as janelas abertas muito tempo (dias), ou semanalmente vou fazendo bookmarks arrastando para as diversas pastas na barra do browser. Para mais tarde lá ir ler com muita atenção. Isto já para não falar das múltiplas vezes que saio para ir espreitar outros softwares de utilidade extrema, como, a título de exemplo, o Itunes, que serve para trocar-esta-música-que-me-está-a-irritar-e-agora-o-que-é-que-eu-vou-pôr? Pois. Mas isto sou eu, porque cada um tem as suas manias.
Mas o que realmente me preocupa é a falta de concentração. Tenho inveja, sem medidas, e vergonha nenhuma de o dizer, das pessoas que depreendo terem altíssimo poder de concentração – pessoas que lêem um livro de mais de 300 páginas por semana, no mínimo. Por mais que faça regime intensivo entre metro, tempos de espera, horas de almoço, ou ao deitar, nunca consigo atingir essa meta. Da mesma maneira que não consigo ler um texto importante sem fazer save para PDF, e imprimir em papel, utilizando os dois lados da folha, para não me sentir muito mal (e eco-friendly o suficiente). E de usar uma caneta e me recostar no sofá “muito concentrada” a ler umas miseráveis folhas A4 com os seus cerca de 20 000 mil caracteres. E claro, o gesto simples que envolve um braço e uma mão que pegam num comando preto que está ali ao lado e que serve para desligar o aparelho, requer a força de vontade de uma irmã fechada num convento, ou de um prisioneiro a manter a sua sanidade entre quatro paredes. É muito mais fácil ir fazer “show 11 new posts” no Facebook ou responder a um sonzinho minúsculo que dá sinal de que temos, claro, de responder a um amigo. E se for uma coisa importante?
Será que esta falta de atenção não é a mesma que tinha aos 16 anos, por tantas razões diferentes? Será que as mais de 12 horas (não sei se é uma média, contei com os dedos das mãos) que passo ao computador num dia de trabalho normal estão a fazer alguma coisa ao meu cérebro?
Pedi ajuda a um professor, um especialista na matéria. Usar o Google (já não falo da Wikipédia que é veneno) e o twitter, desculpem, não é fazer corta-mato, é embrulharmo-nos num sem número de horas de cliques e, logo, de um sem número de páginas que abrimos e que nos levam a outras, que já não têm nada que ver com o intuito original. Mas do que é que eu estava mesmo à procura? Neste caso, parece-me não haver nada como a old school, literalmente. Perguntar a um professor entendido que nos dá capítulos específicos de livros e meia dúzia de links certeiros. São estes que temos de ler, são estes que nos levam aos sítios certos na continuação do estudo. Toca a imprimir e a fechar, com vigor, os aparelhos circundantes.
Foi num desses textos que vi a referência a um estudo chamado “F-Shape Pattern for Reading Web Content”. Realizado a 232 utilizadores em centenas de páginas, o estudo concluiu que na generalidade as cobaias liam em forma de F (“F for fast”, dizem eles) ao longo da página, às vezes em E, mas quase nenhum lia de forma exaustiva o conteúdo.
Senti-me culpada ao ler este estudo, é exactamente isso que faço todos os dias, foi exactamente isso que descrevi no início deste texto, foi exactamente isso que
James Bowman, o autor de “Is Stupid Making Us Google?” declarou que iria acontecer, logo que acabou de descrever no seu texto o estudo “F-Shape Pattern”, como eu fiz agora. Aconteceu-vos o mesmo?
Este texto de Bowman é uma resposta a um outro, que, pelo seu título apelativo, causou, pelo que me apercebi, uma certa polémica nos circuitos mais dedicados a estas matérias. “Is Google Making Us Stupid?” de Nicholas Carr, é um texto que descreve as preocupações do autor no que diz respeito ao que a internet está a fazer aos nossos cérebros, e como hoje em dia, ler um livro, no sentido tradicional – o que Carr chama de “deep reading” – parece cada vez mais uma impossibilidade. Ao longo da prosa o pânico aumenta consideravelmente. Segundo Carr, até para os “literary types” (seus amigos) ler de forma “profunda” se tornou difícil.
A discussão continua de link em link. Colocam-se inúmeros problemas: mas não tínhamos já levantado a questão da leitura aquando do aparecimento da televisão? E não estamos agora a ler muito mais (mensagens de texto, internet, …) do que nos anos 70 e 80?
Na verdade, e é claro, esta será uma outra maneira de ler. Os sinais circundam–nos. Os jornais discutem a sua existência em papel, arranjam maneiras de facilitar, resumindo o conteúdo numa frase, para aqueles que nem folheiam tudo (“article skimmers”), entre muitas outras reformulações neste momento a ser experimentadas. Os jornais em papel estão em árdua competição com as suas próprias páginas web, ou com outras melhores, e cada vez mais parecidos com elas.
E ao mesmo tempo, a comunidade literária discute avidamente o fim do livro, “como o conhecemos”, com o aparecimento de gadgets como o Kindle ou o Sony Reader, que contêm centenas de clássicos logo na compra, sendo depois possível adquirir, com um clique no próprio objecto, qualquer outro novo e apetecível sucesso do momento (os aparelhos são comprados mas ainda não se sabe se são muito utilizados para ler…). Este é um “fim” que nunca antes assim tinha sido anunciado – se pensarmos bem, o objecto livro existe, basicamente desta maneira, tinta sobre papel + capa, desde a sua invenção…
Mas quando a tag line do site americano “The Daily Beast”, editado por Tina Brown (ex-Vanity Fair, ex-New Yorker, ex-Talk) é “read this skip that”, alguma coisa está realmente a acontecer.
Longe de mim dissertar sobre os males da internet, sou viciada, dependente, quero ver tudo, saber, guardar, aprender, e já me surpreendo a ver conferências de uma hora sobre a nova sensação da Google que ainda só está em fase de test-drive. E acordar o rato e afastar o screensaver é mesmo, agora com alguma vergonha de admiti-lo, a primeira coisa que faço quando me levanto da cama, muitas vezes mesmo antes de qualquer outra necessidade básica. E revelo este pedaço de informação não porque precise de o exorcizar, mas porque acredito que não sou, de todo, a única.
E se calhar é por aqui que temos de começar a pensar, e estar muito atentos. E dito isto pergunto-me: alguém percorreu estes caracteres todos sem fazer skimming, sem interrupções longas ou sem saltar largos bocados de texto?

1 Response to “Ler, outra coisa”


  1. 1 Ivan Cardoso

    Excelente!

    Nos tempos futuros iremos tornarmo-nos cada vez mais dependentes… será correcto dizer que são “sinais do tempo”, passos para uma civilização google? Talvez

    obs: li o artigo do príncipio ao fim sem interrupção (só mudei de musica uma vez, as vezes irrita mesmo)

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