Muitos lados da mesma história

O cobertor sujo de Linus, o melhor amigo de Charlie Brown. Algo do qual não nos podemos separar. Esta é apenas uma hipótese. É bom construir histórias a partir das obras do artista britânico Ryan Gander, que vem a Lisboa inaugurar a Marz Galeria. 

Há pessoas que gostam de acumular coisas, papéis, por acharem que irão ser necessários algum dia, para alguma coisa, para o que for. Um dia vão ser essenciais e vamos sentirmo-nos tão bem por os termos guardado. Enquanto lia sobre o trabalho de Ryan Gander lembrei-me de um postal engenhoso que uma vez apanhei num lugar qualquer e que deve com certeza estar bem arrumado dentro de um livro ou no meio de outros tantos pedaços de papel que enchem prateleiras. A frente e as costas desse postal eram iguais, ambos se assemelhavam ao verso de um postal vulgar, com lugar apropriado para escrever a morada, colocar o selo e escrever a mensagem. Não tinha frente, não tinha “imagem”, nem nenhum slogan. Apenas uma frase adornava ambos os lados na perfeição – em fonte pequena e discreta – “There’s two sides to every story”/ “Existem sempre dois lados da mesma história”. 

Ryan Gander gosta de contar histórias e construí-las das mais variadas maneiras. Tudo pode servir – a sua mãe, um trabalho de um outro artista, o vídeo, uma animação, um argumento, uma instalação, uma escultura, uma pintura, um anúncio, um livro, uma fotografia, uma revista, a linguagem, outros criadores, uma conferência, uma entrevista.

Em 2006, Gander comprou uma obra de um artista seu contemporâneo – Jonathan Monk – repito que comprou a obra, não se apropriou de uma imagem da obra nem refez a obra, nem nada disso – comprou a própria obra de Monk – uma fotografia tipo passaporte do artista enquanto teenager presa à parede por um par de brincos “lágrimas” enfiados nos olhos. Gander retirou os brincos à peça de Monk, e deu-os à mãe, fotografando-a com eles presos nas orelhas – a peça tornou-se “Enough To Start Over”. 

Gander não conta histórias no sentido mais habitual do termo – não vemos narrativas, mas às vezes exactamente o oposto, não temos a vida facilitada como quando assistimos a um filme de narrativa linear, precisa e em que a maior parte das vezes já sabemos o que vai acontecer antes mesmo de o vermos no ecrã. Gander gosta de suscitar no espectador outras sensações, incitando-o a formar outras narrativas. 

Em “Herald as The New Black” a sua primeira grande exposição individual no Reino Unido (esteve em Birmingham, na Ikon Gallery no início de 2008, na South London Gallery, na Primavera e estará no Museu Museum Boijmans van Beuningen, em Roterdão, em 2009) depois de um ano sabático, Gander, entre muitas outras peças, apresentou “Man On a Bridge (A Study of David Lange)”. No vídeo vemos o actor Roger Lloyd (muito conhecido por ter sido o actor que mais vezes representou o papel de Sherlock Holmes) a interpretar um homem que atravessa uma ponte e se chega ao parapeito. A acção corta nesse mesmo momento e não sabemos mais. O que vemos são 50 “takes” diferentes da mesma acção, pequenas variações de comportamento. 

Em 2007, o seu ano sabático, Gander desenvolveu outro projecto, com raízes diferentes. Numa reacção ao mundo da arte de hoje, gerido pelas feiras e grandes leilões, Gander decidiu abrir um pequeno espaço em Hoxton que durante 12 meses apresentou o trabalho de 12 novos artistas em 12 exposições. 

O seu trabalho, seja em que forma for, tem suscitado sempre interesse. Ryan Gander é um artista em clara ascensão. Sinal disso é o convite da Tate para que comissariasse uma exposição para o espaço Art Now da Tate Britain (neste momento em exposição e até 26 de Outubro). O título, “The Way in Which It Landed” faz referência à acção proposta pelo artista – Gander desceu aos acervos da Tate e lançou uma moeda ao ar para escolher uma das grades que servem para guardar obras. A frente e o verso da gigante grade – pinturas, fotografias e desenhos de diferentes épocas, colocados “em descanso”- foram tal e qual instalados numa das paredes, em jeito de “cabinet d’amateur”. O restante espaço foi ocupado por obras de artistas cujo trabalho gosta, alguns são seus amigos, outros nunca viu na vida: Carol Bove, Lucy Clout, Aurélien Froment, Nathaniel Mellors e
David Renggli. O desdobrável produzido para a exposição é também uma obra – contêm uma entrevista que Gander fez a Gander.  

Os trabalhos para a página impressa são recorrentes, colabora frequentemente na revista do seu amigo Stuart Bailey, “Dot Dot Dot”, e já fez também dois projectos em forma de livro – também com Bailey, “The Appendix: A Translation of Practice (2003)” e “Appendix Appendix: A Proposal for a TV Series”. 

No próximo dia 9 de Outubro Ryan Gander estará em Portugal para instalar a sua exposição na nova galeria de Carlos Marzia e Nancy Dantas – a Marz Galeria. João Seguro e Ryan Gander são os dois artistas que inauguram este novo espaço desenhado por Miguel Vieira Baptista, em Alvalade. Serão apresentadas três obras, uma delas inédita. 

“And It Came To Life” inclui “Flashes of Beautiful Thinking – 10 October 2008”, “The Klingon Frowns and Simply Replies” e “Linus Van Pelt and a World of Endeavour, Ambition and Optimism”, esta última a obra que Gander preparou para esta exposição. Linus Van Pelt é a personagem do
Snoopy (ou mais correctamente, dos
Peanuts), o melhor amigo do Charlie Brown que nunca larga o seu cobertor de estimação. Na instalação vemos um cobertor usado, pendurado num gancho, um saco de papel castanho fechado e uma linha na parede feita com as diversas bocas que Linus faz durante um discurso em que aceita a presidência da escola no episódio de 1969, “You’re not elected”. Em pesquisa youtube, não encontrei esse mas um outro episódio fulcral na história de Linus – aquele em que dá a Charlie Brown o seu sagrado cobertor e em que, mais tarde, o reclama de volta – “my blanket, Charlie Brown, my blanket, I can’t be without it, after I gave you my blanket my life has been a nightmare”. 

Dois lados de um mesmo postal não são com certeza suficientes para a quantidade de significados ou possibilidades das obras de Gander. Existem muito mais lados para cada história. 

 

“And It Came To Life” de Ryan Gander.

(Inaugura 9/10, às 22h. Até 22/11)

MARZ Galeria. Rua Reinaldo Ferreira 20A (Alvalade). 3ª a Sáb. das 12h às 20h

1 Response to “Muitos lados da mesma história”


  1. 1 Luis Royal

    belíssimo!
    às vezes são precisas estas instruções para conseguirmos entrar.
    obrigado.

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