Canibais dançando com astronautas

São noites raras e porém fatais. A lua pode estar cheia ou nem por isso, podemos ser só nós com uma cheia no coração. Começa com um redemoinho inquieto que nos titila a vontade e rapidamente se transmuta em compulsão para transbordar em comoção. Há noites assim em que ouvimos gritar dentro de nós uma ordem imperiosa: dançar! dançar! dançar! E não há maneira de a amordaçar.

Oh não, nada a ver com as noites rotineiras, uns instantes distractivos na pista de dança, entre dois copos e três conversas. Essa dança sabe bem mas não passa de entretém. Não é disso que falo. Falo de urgência, desvario, obsessão. Há noites em que precisamos de dançar como se disso dependesse a nossa salvação. Ou a nossa ressurreição, talvez seja mais justo. 

De onde vem o redemoinho? Em que paisagem nasce ele, o futuro furacão? (Pois sim, tive uma t-shirt que dizia: “El Ninõ take me with you” e poderia ser uma boa farda para ir dançar.) Existem condições meteorológicas propícias, como a tal da lua cheia. Mas, geralmente, a lua possante e inquietante não passa de mero pretexto e décor conveniente. A meteorologia sentimental, essa é que é ela. Pode acontecer quando sentimos que nos apaixonamos, pode suceder quando nos baralhamos, até pode dar-se quando celebramos. Pode simplesmente ser a vontade de respirarmos. Mas com o corpo todo. 

Nessas noites, corremos toda a cidade. Procuramos um albergue musical, uma cabana calorosa, uma clareira nocturna. E quando a realidade se compadece com as nossas ânsias, chegámos lá. No recreio da escola, quando jogávamos à apanhada, existia um canto onde ninguém nos conseguia apanhar nem nos podia tocar. Chamava-se o “coito”. Mais tarde, aprendemos-lhe outro significado mas a ideia é sempre a mesma: um lugar onde existe a possibilidade de nos salvarmos e onde podemos saborear o seu prazer exultante. Em plena cumplicidade, a liberdade.

Pois tal como no jogo, numa pista de dança podemos alcançar um certo estado de protecção do mundo e de suspensão sobre a vida. A música passeia pela nossa pele, o ritmo sacode-nos as mágoas, os acordes acordam-nos os sentidos tal como nos acordam com o universo. A fúria doce da felicidade dança connosco. Nesses instantes, o sexo pode sair-nos pela ponta dos dedos, tal como a bondade. E se compartilhamos o momento suspenso com quem dança connosco, podemos formar família. Amigos, conhecidos ou desconhecidos,

tanto faz, a música até pode não ser essa mas “We are family”. Porque todos somos agora canibais musicais. Todos somos astronautas flutuando com a gravidade que dá a felicidade espontânea.

Verdades inequívocas como esta tornam-se muito nítidas, na escuridão e deslumbramento da iluminação piscante de uma pista de dança. Mais, garanto: algumas das mais drásticas decisões de vida, tomei-as a dançar. O corpo liberto e feliz pode deixar a cabeça muito clara. Tudo se desfoca em nosso redor para que algo se torne subitamente incrivelmente transparente dentro de nós. Uma verdade que sobe à tona e acena, braços no ar. São momentos de rara lucidez, flechas de súbita certeza que nos atingem entre a multidão tumultuosa, preciosos e decisivos momentos. Dançamos de balanço com o mundo, equilibramo-nos no difícil fio de trapézio da vida. Temos os pés no chão? Não, seguramos o coração nas mãos.

Quantas horas passámos nós nesse êxtase lânguido? Neste tão frágil luxo? Tanto faz, o tempo perdeu a sua ansiedade e refastelou-se esquecido em puro prazer. A energia brota do chão, chove do firmamento luminoso sobre nós, abraça-nos pela música e é-nos oferecida pelos outros, esses nossos novos camaradas que dançam connosco. E benditos são aqueles que têm o dom de nos fazer dançar, nessas ocasiões. “Sois deuses” apetece sussurrar ao ouvido do DJ mascarado ou soprar à orelha de quem soube organizar essa conjuntura perfeita, inventar esse mundo certo que responde e acrescenta ao nosso gáudio e desassossego. 

E na madrugada, de regresso a casa num táxi que atravessa já o dia e voa sobre a cidade estremunhada, só aí o pulsar das nossas veias abranda finalmente. Mas sentimo-las ainda absolutamente vivas e dentro delas dançam ainda, na cadência de um slow antigo, todos os glóbulos que são agora brancos, como a paz.

3 Responses to “Canibais dançando com astronautas”


  1. 1 sps

    catarina, gosto muito das suas crónicas do público …mas absolutamente 10X10 mais esta fantástica dança com canibais e astronautas!
    parabens!!

  2. 2 IPL

    Cara CP,

    Gostei mto do texto, que me soou demais familiar…
    No probs! “wordever” ;-)

    IPL, Astronaut2B

  3. 3 PM

    Às vezes, sinto uma enorme vontade de dançar.

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