Padam Padam

Aqui, e a cada mês, vai o que ando a escrever para um espectáculo Teatro Praga a estrear no CCB em Setembro de 2009 e que em princípio se chamará Padam Padam. Podem vir agrafados pedaços do que ando a escrever para um musical Teatro Praga a estrear no Teatro Municipal S. Luiz em Junho de 2009 e que em princípio se chamará Demo. E podem também ir mais outras coisas. São esboços, sobras, fragmentos a que se tenta dar um feitio que interesse ao formato deste jornal.
# 0
André, Cláudia, José, Patrícia e Pedro.

0. 

Pedro Temos de enquadrar.

Cláudia Enquadrar?

Pedro Fazer um enquadramento. Situar. E situar-nos. O princípio. O primeiro dia. O sol que nasce. A primeira garfada. Quando foi? Para onde vamos? Quem és tu? E eu? Que carne é esta que não como? Que corpo é este que não me chega? Que voz é esta que não oiço? 

Cláudia Enquadrar…

Pedro Quantos somos? Quantos já não somos? As palavras. A língua. O que é isto? O que é isto tudo? Onde é que estamos? 

Cláudia Enquadrar…

Pedro Não é fácil. Eu sei que não é fácil. Mas temos de tentar. 

Cláudia Tentar o quê?

Pedro Enquadrar. 

Cláudia Ah.

Pedro De onde vimos? Para onde vamos? Coisas assim. Quando é que começa uma frase? Quando é que acaba? Porquê sempre as metades e os três quartos? O dia e a noite. O silêncio. Percebes? É ambicioso, eu sei, mas temos de tentar.

Cláudia Tentar o quê?

Pedro Enquadrar, caralho.

Cláudia Ah, enquadrar, sim.

 

 

 

1. 

André Eu gostava tanto de ir para o campo. Para os montes. Estou mesmo a precisar. Um campo oscilante com o vento a dar. Acordar de manhã e pisar a erva gelada. Ir buscar ovos à capoeira. Alimentar a porca, pôr as cabras a pastar e assim. Estou mesmo a precisar. Estou com ligeiros problemas de adaptação. 

Cláudia Há três dias que não comes.

André O chão trava-me os pés, Vânia, o tempo à minha volta é lento, sempre tudo devagar, a empatar e eu a falar sozinho. Haverá coisa mais triste que falar sozinho? 

Cláudia Eu acho que sim, Gustavo. Olha por exemplo as criancinhas.

André Deixa-me acabar. Estou a caminho da genialidade, da anorexia, é o meu caminho, seguro e firme. Mas sou infeliz porque ninguém me acompanha, ninguém ao meu lado, ninguém que responda. Vejo como os corpos à minha frente se mexem e não reconheço os movimentos. E devia calar-me ou ir viver para as montanhas.

Cláudia Estás com ligeiros problemas de adaptação. 

André Isso foi o que eu disse. Já disse. Já foi. Já era. Não me faças voltar atrás. Não quero parar. Tenho de criar. Urgentemente. De compor.

Cláudia Há que dar tempo. Primeiro comes. Vamos jantar. A vida é uma simples questão de respiração. De inspiração e expiração.

André Mas como posso eu expirar se não encontro o que inspirar?

José (lendo Ruy Belo) “Todas as mortes nos matam um pouco. / Todos os anos são anos de morte / Os anos morrem por partes dia a dia / O poeta pode ser fraco pode ser forte / por vezes vai dar uma volta e demora”.

 

2. 

Pedro Estou nas ruas da amargura. Estou nas ruas da amargura. São as minhas ruas. Caminho amargo pelas ruas da amargura. O peso de todas as desgraças abate-se sobre mim. Miséria, desemprego, doença, dores de cabeça, abandono, tristeza, desesperança, só desgraças. Enfio-me no meu buraco, tinta a cair das paredes, e fico à espera que me batam à porta.

Patrícia Toque toque. Tens de nos ajudar, Fausto. O mundo está a acabar e ninguém o pode salvar, excepto tu, só tu. 

Pedro O mundo tratou-me mal e eu nada quero com o mundo.

Patrícia Pensa na tua família. Pensa nos teus amigos. Pensa nos animais. Pensa nas pradarias e nas florestas. Vai tudo desaparecer se não nos ajudares. 

Pedro (aparte) E eu resisto porque estou magoado com o mundo. 

Patrícia Não resistas, Fausto. Estás há anos enfiado neste buraco. Zangado, sem esperança, isolado. Todo o mundo depende de ti. O que é que queres mais?

Pedro Quero-te a ti.

Patrícia Ainda?

Pedro Queres casar comigo? Eu gostava tanto de casar, Rosinha. Os dois, como antigamente. Eu e tu. Por ti, sim. Por ti abandono o desterro, ponho para trás a amargura, deixo de vez este caminho que me leva ao fundo dos fundos. E sinto que renasço. Rosinha, quando é que partimos?

Patrícia Tanta pressa, Fausto. O mundo não se fez em dois dias. 

Pedro E a chuva não bate assim. Já percebi tudo. Vai-te embora. Adeus!

3. 

André Vou para o campo, é isso, vou para as montanhas. 

Cláudia Para as montanhas, Gustavo?

André Gosto das montanhas. 

Cláudia A paisagem é sempre a mesma nas montanhas.

André Paisagem é paisagem, Vânia. E o resto é paisagem. Há que ir à origem das coisas. Encontrar a expressão do intemporal, sem princípio nem fim. É com isso que eu exulto. E sou um génio. 

Cláudia Nunca te cansas?

André Nunca, Vânia, nunca. Tenho pernas para andar. 

Cláudia E vais-me deixar aqui.

André Sou um cavaleiro solitário. 

Cláudia E solidário?

André Sólido. Um génio em construção. Um criador. Sou o sábio, o marinheiro que sobreviveu ao naufrágio, aquele que ficou para contar. E estou à frente do meu tempo. Antes do dia se pôr já eu nasci. Antes de beber já engoli. Mas o chão continua a travar-me os pés. E não há maneira de conseguir pintar um quadro. Ou escrever um poema. Ou compor uma canção. 

Cláudia Come.

André Não quero comer! (Chora.) Quando é que finalmente isto… Quando é que finalmente chega o meu tempo?

José “Pergunto ao vento que passa / Notícias do meu país / O vento cala a desgraça / O vento nada me diz”.

 

4. 

Pedro Estou nas ruas da amargura. Estou nas ruas da amargura. São as minhas ruas. Caminho amargo pelas ruas da amargura. O peso de todas as desgraças abate-se sobre mim. Miséria, desemprego, doença, dores de cabeça, abandono, tristeza, desesperança, só desgraças. Enfio-me no meu buraco, tinta a cair das paredes, e fico à espera que me batam à porta.

Patrícia Toque toque.

Pedro Voltaste?

Patrícia Voltei.

Pedro Vai-te embora.

Patrícia Casamos no final.

Pedro No final? 

Patrícia No final, sim, quando isto acabar. Fica prometido.

Pedro (aparte) E eu resisto porque estou magoado com o mundo. (Para Patrícia) Não há final. Não há princípio.

Patrícia Esquece o passado. Temos de lutar pelo futuro. E sem a tua ajuda não há futuro. E se não houver futuro, acaba-se o passado. E acabando-se o passado não sei o que acontece ao futuro. Já para não falar do presente que nos foge sob os pés como a água de um rio. Fausto, ajuda-me. Fausto, ajuda-nos. Vem aí uma catástrofe.

Pedro (aparte) E eu resisto porque estou magoado com o mundo. (Para Patrícia) Estás a tremer, Rosinha.

Patrícia Não sou eu, é o chão por baixo dos meus pés. Sinto antes de todos. Sei bem o que aí vem mas ainda ninguém percebeu. Ajuda-me, Fausto. Só tu me entendes, só tu me podes acompanhar. Só tu nos podes salvar. Vem aí uma catástrofe.

José (lendo Pasolini) “Mas eu, com o coração consciente de quem só na história tem a vida, poderei eu agir de novo com pura paixão, se sei que a nossa história terminou?” 

5. 

Pedro Cena novecentos e trinta e três. Os heróis partem em viagem para salvar o mundo. As estradas estão vazias. Os montes olham de lado e vêem-nos passar em velocidade de cruzeiro. E nós olhamos com os montes e pensamos, Eis o princípio, foi assim que tudo começou, mas estamos enganados. Porque aqui não há princípio nem fim. Falta-nos a capacidade especulativa. O começo e o fim são só um. Porque se alguém achar que se eu me calar agora é porque estou a acabar, isto só mostra que lhe falta capacidade especulativa

Cláudia Mas já acabou? 

Pedro Não. 

Cláudia Não?

Pedro Falta-te capacidade especulativa. 

Cláudia Especulativa?

Pedro Não estamos a acabar agora. Nós acabámos quando começámos. 

Cláudia Quando começámos…

Pedro É ambicioso, eu sei, mas temos de tentar.

Cláudia Tentar o quê?

Pedro Enquadrar, caralho.

0 Responses to “Padam Padam”


Comments are currently closed.