Natal em família

Entrevistas impossíveis por Joaquim António Rocha

E eis, caro leitor, que chegamos à época do ano que mais se adequa ao espírito destas entrevistas – o Natal. Tal como tudo aquilo que por aqui escrevo, no Natal tudo é falso. Deliciosamente falso: o Pai Natal não existe, o menino Jesus também não, e o São Nicolau é mais um santo que faz umas coisas que carecem de credibilidade – milagres.

Não foi fácil, por isso, decidir qual dos três deveria entrevistar, e fui mesmo obrigado a uns momentos de reflexão: uma vez que eu não queria nada com santos, a escolha teria de ser feita entre o calaceiro do menino Jesus – sempre na palheta deitado e estendido – e esse velho representante da classe operária que, uma vez por ano, se vê obrigado a visitar cerca de 378 milhões de crianças, em 31 horas de trabalho, tempo de duração de uma noite de Natal, dada à existência de diferentes fusos horários. Mas dado que esta entrevista também não é para meninos, acabei por optar por entrevistar o Pai Natal, e deixar o Jesus, deitado e estendido, na palheta com a vaca e com o burro. O melhor seria não mexer no presépio.

Foi assim que regressei à infância e voltei a escrever ao Pai Natal, agora em versão electrónica, não para pedir brinquedos, mas uma entrevista. A resposta acabaria por chegar dias depois, também em versão electrónica, mas com encontro marcado na China, para onde se tinham mudado todas as fábricas de brinquedos da Lapónia. Mas que chatice! – pensei – Para a China?!!! Não estava nada a apetecer-me. Troca de e-mail para lá, troca de e-mail para cá, acabei por marcar encontro com o Pai Natal no Toys’R’Us de Alfragide. Sempre era mais perto.

E é aqui, caro leitor, que esta entrevista se aproxima fatalmente de uma triste história de Natal muito pior do que as da Disney todas juntas. Chegado ao Toys’R’Us, e para grande espanto meu, quem lá estava não era o Pai Natal, mas o meu pai. Sim, leram bem – o meu pai! – na companhia de um veado de nariz vermelho e de duas renas com ar de cabras.

– Mas o que estás tu aqui a fazer? – perguntei eu em estado de choque – a mãe sabe disto?

– A tua mãe só saberá disto, se fores tu a contar-lhe. Sim, porque eu não acredito que ela vá ao blog do Lux ler esta entrevista. O Magalhães que ela tem não vai tão longe… 

– Mas pai… és capaz de me explicar o que se passa e qual a razão de estares aqui?

– Não querias entrevistar o Pai Natal? Pois aqui estou – respondeu-me meio irritado – Mas não percebo esse teu espanto. Já és suficientemente crescido para saber que o Pai Natal não existe. Somos nós, os pais, que nos vestimos de vermelho e fingimos ser o velho barbudo carregado de presentes. Não me digas que não conhecias a história? – E ria – Oh! Oh! Oh!

Eu não estava a acreditar neste filme. Só me faltava isto: ser enxovalhado em público e pelo meu próprio pai. Tinha de pôr um cobro a isto.

– Pai, tem cuidado com o que dizes porque estamos a ser lidos por milhares de pessoas, incluindo todos os meus amigos. E francamente, tu já não tens idade para isto. Já viste essa tua figurinha de speedo de lycra vermelha. Vou ter de ligar à mãe.

– Nem penses! Não faças isso. Se ligares à tua mãe vou ter de lhe dizer que aquela amiga que costumas levar a jantar lá a casa – e que ela gostaria muito de ter como nora – afinal se chama João. Pode ser que ela queira ir ver o show dele, no próximo fim-de-semana, ao Finalmente. A tua mãe é pessoa para gostar… ou disso ou de o ver no “lugar às novas”, essa espécie de “American Idols” para travestis em início de carreira. Esse teu amigo saiu-me cá um artista… 

– Pai, por favor, não estamos em casa. Dá para seres um pouco mais discreto? – perguntei-lhe entre dentes. 

– Que seca, pá! Em miúdo tinhas muito mais sentido de humor. Ainda me lembro dos natais em que imitavas a Judy Garland… Tinhas tanto jeito… e que bem que cantavas o “Somewhere Over The Rainbow”. Isto aos 8 anos! Sempre foste muito precoce…  

– Mas isso passou-me com a idade – obstei com desagrado.

– Passou, passou… Passou da mãe para a filha. Lembro-me muito bem de ti, já por volta dos teus 12, com uma cadeira às costas a tentar imitar a Liza Minnelli no Cabaret. Mas tiveste mais fases: a fase Diana Ross, a fase Shirley Bassey, a fase Lola Flores… Isto até aos 15, porque aos 17 davas grandes shows a imitar as coreografias dos Modern Talking. Porém, agradeço-te nunca teres chegado à fase Boy George. Teria sido dramático.

– Bom… – disse eu em tom de ataque – se o Pai Natal não existe, como justificas que no ano passado a avó tenha recebido de presente um vibrador e o avô um tubo de K-Y, que ele usou para lubrificar os travões da cadeira de rodas? Olhando para ti assim vestido, deduzo que houve aqui dedinho teu…

– Filho… não entres por aí – disse-me com tom paternal – há coisas que um rapaz da tua idade já deveria saber.

E dando uso a um adjectivo muito na moda continuou:

– O Natal é a mais improvável das festas, uma celebração da não existência, uma mentira colectiva na qual (quase) todos gostamos de embarcar. Durante um período de tempo, que pode oscilar entre os dois e os cinco dias, somos falsamente simpáticos, prestáveis, generosos, e cultivamos falsos bons sentimentos. É certo que podemos ser falsamente simpáticos, prestáveis e generosos noutras alturas do ano. Mas talvez seja por isso que se diz que “Natal é todos os dias” ou que “Natal é quando um homem quiser”. Como diz um amigo meu, o Natal é apenas um momento em que fingimos ser bons para podermos ser realmente maus durante o resto do ano. E a isto se chama a magia do Natal. E agora deixa de fingir que és jornalista e anda daí beber uma jolas com as minhas amigas renas.

– Desculpa?!!!… – respondi eu incrédulo. 

– Ok, Ok… Podes ir com o meu amigo veado, se preferires…

E foi neste preciso momento que comecei a ouvir sininhos.

1 Response to “Natal em família”


  1. 1 Vera

    Ainda oiço os sinos! Grande Joaquim! Brilhante!

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