Gosto… Mas tenho vergonha de gostar

“Respeito muito a maneira de cantar da Christina Aguilera, não sei porquê quando a oiço, acontece algo dentro de mim…” 

Cat Power

 

Começar o ano a dizer a verdade, só a verdade é que conta. 

Obedeço à minha resolução, digo: gosto muito dos Coldplay, grupo inglês que nada tem a ver com o resto dos meus gostos musicais. Ouvi o single “Viva la Vida” mais de 150 vezes, diz-me o computador. O que faz com que tenha ouvido o tema mais de uma vez por dia, desde a altura em que saiu, até ao momento em que assino este texto. 

O pior é achar que o ouvi ainda mais, mas como nem sempre a faixa chega ao fim, não é contabilizada pelo contador perverso que os iPods têm institucionalizado. Assim o meu gosto é duplamente atraiçoado.

A máquina iPod, cria automaticamente uma playlist de “músicas mais tocadas”, um género de top musical. Os seus inventores podiam ter-lhe dado igualmente o nome de “playlist da Denúncia”, ou “Top Traiçoeiro”, pois permite saber o número de vezes que ouvimos uma faixa, com datas e horas exactas de delito. 

Para isto servem os gadgets digitais: guardar informação, vestígios de verdade. 

 

A última vez que o Tiga passou por Lisboa, pensei pedir-lhe um autógrafo no meu iPod. Achava o que o seu “Far From Home” era líder incontestado da minha playlist de músicas mais tocadas. Mas ao verificar o objecto, não só fui obrigado a desmentir essa convicção, como lhe detectei outros segredos musicalmente íntimos, que superavam a minha incoerência dos Coldplay (sabem quem é aquela rapariga que canta “A Thousand Miles” num atrelado ao piano pelas ruas da América? Não queiram saber). Envergonhei-me, guardei a ideia que tive de autógrafo numa gaveta (e o iPod também). A minha máquina tinha-me traído e só passados alguns dias percebi o que me revelava. 

Quando inventaram tal objecto, Steve Jobs, Jon Rubinstein e Jonathan Ive pensavam certamente que era urgente revelar ao mundo as contradições do gosto humano.

O iPod mudou a nossa maneira de ouvir música, antigamente carregavam-se cinco ou seis CDs, levavam-se duas ou três cassetes na mochila. Escolhiam-se emoções musicais duradouras para uma temporada longe da aparelhagem, sem riscos, levava-se do bom e do melhor. Mas os aparelhos de mp3, ao ampliar as hipóteses de escolha, permitem que se oiça música com outra memória: a afectiva. A partir de uma sensação escolhe-se um tema, a partir de um cheiro uma melodia. Por isso, nem sempre queremos batalhas ao som de M.I.A. dentro de um autocarro e Rihanna pode ser melhor solução para enfrentar a hora de ponta (mesmo que a meia hora que se passou a ouvir “Disturbia” fique gravada na eternidade de um “Top Traiçoeiro”). 

Os aparelhos de música “comprimida” permitem que, no meio de tudo aquilo que amamos e cantamos em voz alta, se misture o que amamos e murmuramos em segredo escondidos dentro de casa. A máquina tem espaço para o nosso bom gosto assumido como para o mau gosto refundido. 

Na música, a lógica também é: “diz-me o que ouves, e dir-te-ei quem és”. Por isso, jovens alinham nomes de artistas célebres nas páginas myspace, encontram-se na música, ou não? Parece ser como os signos do zodíaco, tenta-se logo do início ver se a combinação funciona, e funciona? 

Andamos desde os tempos da escola mais remota, a construir uma imagem para nos proteger. Desenhando a personalidade longe de incoerências estéticas. Andamos disfarçados e não nos lembrarmos que, nos nossos segredos, existe algo de delicioso. Escondemo-nos, escondemos a verdade na vontade inofensiva de seguir um ideal.

Por isso, pedi a um grupo de conhecidos para me confessarem hábitos secretos. 

“Quem és tu?”, mas perguntado de outra maneira: “De que têm vergonha de gostar?”. 

A música era um pretexto de um acto de contrição/confissão que podia alargar-
-se para conter outros vícios e até fetiches. Os que não alinharam pensaram certamente que “as coisas deliciosas não devem ser publicitadas; pois podem perder o seu encanto”. Mas quem disse esta frase também entrou no jogo… Esquecendo a sua regra de charme cultivado. 

Claro, prometi não revelar nomes e transcrever somente detalhes. 

Assim, contabilizei um número sem fim de raparigas e rapazes “alternativos” que dizem voar ao som de Roísín Murphy, Feist, New Order ou The Smiths. Quando na verdade, Beyoncé, Leona Lewis, ou Roxette são capazes de os levar para bem mais longe. A banda sueca é um excelente exemplo de como o bom gosto pode ser ameaçado por uma música: a pessoa que me confessou esta fraqueza estilística ameaçou-me de morte.

As músicas fáceis, que se apoderam do ouvido, quase nunca são adquiridas. Preferindo continuar secretos, os seus ouvintes esperam por uma passagem na rádio, tentam não ser confrontados com a frase “não acredito… tu, a ouvir isto?” (e lá se vai a reputação). 

E que outros encantos comprometem as pessoas? 

Ninguém se apresenta a um desconhecido a dizer que chora sempre com o mesmo filme romântico. E quando se tenta parecer dono de alguma razão, é preferível não falar de uma estranha obsessão por tabletes de chocolate devoradas na cama ao domingo de manhã. Também é frequente conhecermos pessoas que ainda têm medo das personagens que lhes infernizaram a infância, mas nunca vamos saber quem elas são.

Mesmo em tom de discrição estes segredos assustam. Falam de sentimento, trazem a palavra vergonha à boca. Mesmo que sejam o mais verdadeiro que se tem para oferecer a alguém de próximo, continuam escondidos.

Quando os segredos se desviam para o fetiche, ou para uma lógica pessoal, conseguem revelar pessoas mais sonhadoras, próximas da ficção. E eu, prefiro pensar que o mundo é feito de pessoas assim: miúdas a atravessar a rua longe da passadeira, desafiando o dia-a-dia carregado de prudências; rapazes a sonhar poder vestir uma saia e desafiar as convenções; homens, enquanto nadam, pensam na possibilidade de se transformarem em golfinhos,

Os computadores foram inventados por nós neste tempo que nos transformou em Homens formatados. As máquinas apontam erros e nós fingimos não os ver. Mas podemos ser terroristas na mesma, passar a fronteira. 

Não terão Steve, Jon e Jonathan inventado no iPod uma solução para transportarmos a verdade sempre connosco? 

E a partir de uma música assume-se o que não é assumível.

2 Responses to “Gosto… Mas tenho vergonha de gostar”


  1. 1 Wizard

    Gosto de ti mas não tenho vergonha de gostar! Amei verdadeiramente! Tenho pavor que alguém veja essa minha playlist, por isso comparo o meu ipod à minha escova de dentes: indispensável e intransmissivel!

  2. 2 Ricardo

    Obrigado por me fazeres sentir que há mais gente que, como eu, tem “guilty pleasures” que têm vergonha de assumir! Na verdade eu não tenho vergonha de gostar, mas tenho vergonha que as outras pessoas saibam que eu gosto! ;)

    Obrigado também pela maneira maravilhosa como escreves e nos envolves no tema com as tuas palavras!
    Continua!

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