Quimpostor

As palavras estão cansadas mas eu não. 

Pensem bem: são as mesmas palavras desde sempre para ajudar gerações umas a seguir às outras de jovens humanos que sentem que os seus problemas são o eixo e satélite de tudo. É o mesmo vocabulário que é usado desde que é vocabulário, para exprimir a ânsia de querer ser amado, o vazio irritante de adormecer mais uma noite sozinho e a falta de ideias perante mais uma erecção.

Falava há uns dias atrás com a minha ex-namorada e actual bff (best friend forever – não só sou progressivo como fui educado por mulheres) e ela dizia-me que sim que sou muito engraçado, mas que se me sentisse mais confiante com o meu aspecto seria mais atraente. Sim, na verdade uma coisa em que sou bom é em não me levar a sério, é a gozar comigo – isto como entretenimento providenciado a outros e como uma ocupação privada e bastante manual. Mas é nesta bivalência que jaz uma dicotomia por si só bastante hilariante – à medida que as punhetas vão perdendo a piada, mais material tenho para vos entreter aqui. Eu sei que já disse isto antes, mas há muita graça na desgraça.

Atenção, pára tudo! Não quero mesmo transformar isto num exercício de coitadinhismo português. Onde eu quero mesmo chegar, o que quero mesmo dizer, é que até eu já estou farto de mim, da minha cosmologia egocêntrica e das minhas auto-depreciativas e exibicionistas masturbações emocionais. Já não há cu para o Quim, esse impostor.

Posso no entanto, no espírito da época, oferecer-vos uma coisa. Algo útil, uma ferramenta para viver melhor. Um facilitador de escolha, um cristalizador de personalidade, um comprimido ideal para serem mais vocês. Uma mentira para soar a verdade entre copos e outras drogas. Um barrete de salão para serem o centro da festa de natal da empresa ou para animarem o reveillon quando a conversa for dar às resoluções de ano novo, esse logro lavado a champanhe e abafado com passas. Vou-vos oferecer o que todas as ideologias ofereceram até agora, mas sem os altos níveis de compromisso. Para vocês, agora e só aqui, vou dividir o mundo em dois. 

A melhor maneira de saberes quem és, é saberes quem não és. Todos precisamos de um oposto, uma referência para evitar, um Norte para continuares a ir para Sul.

Há várias maneiras de dividir o mundo em dois. A mais comum, mais chata e bafienta, besuntada de ignorância e encharcada em medo, é a para sempre clássica, Nós e os Outros. Resulta muito bem no “Lost” e resultou muito bem para manter uma data de ditaduras em vigência, defendidas com um discurso de pânico e desinformação para impunemente cometerem os maiores genocídios e outras guerras santas. Mas todos sabemos isto, só que dá uma trabalheira dos diabos – Não há Outros, só há Nós. O que descontextualizado e localizado é über nazi, mas globalizado é lindo. Portanto vejam lá.

Outra maneira de separar as águas, os alhos dos bugalhos, é entre géneros. Mas isso não faz muito o meu género. Adoro mulheres e estou de há uns tempos para cá a perceber se adoro da mesma maneira homens. Por isso, para mim, estamos num território onde não vale a pena dividir para conquistar. Aqui acho que é preferível manter tudo junto para todos termos mais escolha, não? Tipo buffet.

Bem e Mal? Por favor, poupem-me.

Uma forma mesmo 90’s mas ainda pertinente de dividir o mundo em dois lados opostos é o Pepsi Challenge. Coca–Cola ou Pepsi? Ao que é que és fiel? A um inovador que define uma categoria, ou um second comer, que suscita competição e obriga toda a gente no jogo a não tomar nada por garantido, as paradas a aumentar e a coisa toda a evoluir? Isto é liberalismo no seu melhor: os líderes e os outros, todos em competição pelo topo. Uma brincadeira extenuante e ainda à espera da mão invisível. Mas resumindo, ou te empenhas em ser o melhor, ou estás melhor só a ser. Como dizia a tua mãe, tu é que sabes.

Depois podes dividir o mundo em Playmobil ou Lego, Lisboa ou Porto, Beatles ou Stones, esquerda ou direita, praia ou piscina, etc. Estas são dialécticas que dependem dos exemplos recebidos e das próprias circunstâncias das escolhas dos teus pais. E é mesmo assim que te queres definir? Sou isto porque os meus pais eram isto? Sou um prolongamento, um 1.1 dos gajos que se foderam para me ter? Vou ter de ser um re-run só porque eles não tinham preservativos? Não. Tens sempre uma escolha. E é para facilitar essa escolha que te trago o Método Carlitus.

Na minha vida conheci muitos Carlitos. Entre eles distinguiram-se dois com um enorme potencial para arquétipo. Chamei-lhes Carlitus Iconicus. E é com o seu poder icónico e antagónico entre si que quero dividir o mundo.

 

Carlitus da Arrentela

Carlitus da Arrentela era o mais velho de 4 e tinha 8 quando eu tinha 5. Carlitus entrou na minha vida pela janela do quarto dos meus pais, para comer o flamengo e o chouriço à dentada. Uma ofensa da qual durante umas semanas eu e a minha irmã fomos culpados. Carlitus roubou-nos o coração depois de ter sido apanhado a roubar-nos o pequeno-almoço. Carlitus, eu e o Carlos Sílvio, durante os Verões na Arrentela, passávamos a digestão à porta da Piscina Municipal da Torre da Marinha a pedinchar a entrada. Conseguíamos sempre. Num dia de céu cinzento e de um vento mais assertivo, Carlitus ensinou-nos uma lição que nunca mais esquecemos. Nem ele. Carlitus da Arrentela era muito magro, destemido e não sabia nadar. “Vou saltar da de dez!” Parecia que estava a ser movido por algo maior do que ele, talvez a pressão de grupo ou um espírito de missão qualquer. Gosto de acreditar que aquilo aconteceu para eu aprender uma lição importante, para ganhar um herói. A estratégia do Carlitus era saltar para a esquerda de maneira a ter de esbracejar o mínimo possível e chegar logo à beira da piscina. O que resultava bem, mas naquele dia o vento tinha mesmo qualquer coisa a dizer. O Carlitus estava com medo mas saltou. O vento falou e o Carlitus, numa desgraça esquelética, caiu fora da piscina. A piscina parou com o vermelho no azul. Carlitus sobreviveu com uma baliza de 5 dentes em falta e todo partido como uma caixa de palitos nas mãos de uma criança. 

 

Carlitus do Monte Abraão 

 

Carlitus do Monte Abraão era um filho único rodeado de brinquedos e possuído pela preguiça e dominado pelo medo. Os pais dele deram-lhe vida para poderem abusar dele. Não saia de casa, enchia a casa de amigos e não fazia nada do que os pais lhe pediam e depois aceitava a consequência encolhido, antecipando cada pancada. Sentava-se no chão, abraçava a cabeça e adiantava o choro ainda antes de apanhar a primeira. “Carlitus! Os trabalhos de casa? O lixo ainda está no caixote. Carlitus!”. Uma rebeldia passiva e masoquista. Tipo aqueles putos estúpidos que dizem “Não doeu.” Agarrados a uma glória parva que não representa liberdade nenhuma. Carlitus agora está bem. O Carlitus já é pai. Eu não conheci o Carlitus mas a estória dele chegou-me e impressionou-me tanto como a do outro. 

Agora que têm de voltar às vossas famílias e aturar as consoadas, agora que começa um ano novo, tirem dois minutinhos e perguntem-se: “Quais dos Carlitus sou eu?”

Só mais uma coisinha.

Se és tu quem vai acordar para sempre contigo, não te fodas, faz amor contigo. Acho que é um bom conselho de Natal, não aumenta é a natalidade.

7 Responses to “Quimpostor”


  1. 1 jose albergaria

    Caro Quimpostor,

    É um prazer ler-te.

    As palavras, todas elas, como dizem os franceses das desculpas: foram inventadas p’ra serem utilizadas.

    No entanto, a narrativa que as atravessam, essa, é de mor singularidade e, às vezes, desconcertam o leitor.

    Pois.

    E quando o leitor é conhecedor do “escritor”, do que manipula as palavras, então o pathos, que tal exercício produz é, ou pode ser, perturbador!…

    Gostei, muito, de te ler e sinto-me honrado, contente e feliz de poder assumir algum património genético investido no “escritor”.

    Abraço grande e um enorme 2009,

    J.A.

  2. 2 QUIMPOSTOR

    ÉS MUITO LINDO E OBRIGADO POR ISTO.

  3. 3 Rita

    Que bonito!

  4. 4 Catarina

    Caro Quim,
    Desde o primeiro número do jornal, que por acaso apanhei a sair do lux simplesmente para ter algo com que me entreter no táxi, fiquei fã dos teus textos. Actualmente já não estou em Portugal mas vou seguindo o blog e fico sempre agradavelmente surpreendida. Tens aquela capacidade de capturar coisas que muitas vezes sentimos mas a maior parte de nós não tem a habilidade de pôr em palavras. E parece-me que isso é função mais nobre que um escritor: fazer-nos ver o mundo e nós próprios com uma nova luz e com mais claridade. Há pedaços de textos teus que vão ficando comigo e que guardo quase como mantras. Fico ansiosamente à espera do número de fevereiro. Muitos parabéns.

  5. 5 Carolina: há muitas.

    Porque é que nenhum dos Carlitus acaba com um “e viveu feliz para sempre”?

    Acho que já sei pra qual dos Carlitus me inclino mais, mas custa-me a crer que, sempre que me atirar de cabeça vou partir os dentes.. talvêz por não querer perceber isso esteja prestes a usar placa.

    É dificil dividir o mundo em dois e muitas das coisas que eu achei não ser, sou. Mas quando cuspimos pró ar, o “escupe” cai-nos inevitávelmente em cima… é fatal. (a menos que sejas rápido! mesmo muito rapido!)

    Fizeste-me pensar com este texto, coisa que eu evito fazer para não me chatear… porque chego a conclusões que me revoltam e tenho de tratar mal pessoas… depois perco a credibilidade e deixo andar. até à próxima!!

    Tu, não te canses. Podes não ser o Deus de tudo e o Profeta de num sei quê… mas fazes o bem a muitas pessoas quando exteriorizas a tua complexidade intelectual e emocional em forma de arte.
    Dizes para fazermos o bem a nós próprios, espero que tenhas quem te diga o mesmo…

    mais uma vez, Obrigada.

  6. 6 QUIMPOSTOR

    MUITO OBRIGADO CATARINA.
    FICO MESMO FELIZ QUE OS MEU DISPARATES DÊEM LUZ.
    BEIJO E BOA VIAGEM

  7. 7 QUIMPOSTOR

    BEM….. AVALANCHE DE MIMINHOS.
    OBRIGADO CAROLINA

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