Alegria

A sedução não tem regras, só desejo, puro e líquido desejo. Pode ser o desejo obsessivo de um rosto ou apenas um desejo sem rosto ou até um desejo que tem mais o nosso rosto que o rosto que está diante de nós. O desejo contém em si alegria. E quando a alegria espreita dentro de nós, apetece-nos encantar o mundo connosco. Seduzi-lo, portanto. Charmá-lo. Chamá-lo.

Quando me lembro das minhas noites aos 16 anos é isso que recordo: alegria. Erámos muito novos. A nossa idade era igual à idade do mundo que também todo ele parecia uma novidade. Tinha 16 anos quando entrei no Frágil – era o único sítio onde me deixavam entrar, com aquela idade tão inocente quanto perigosa. O Alfredo, que me tinha visto crescer enquanto entregava antiguidades lá em casa, devia pensar para os seus botões que sempre era melhor eu estar ali, debaixo do seu olho infalível, que andar pelas ruas em aventura e desvario. E foi assim que o Frágil se tornou a minha primeira pátria nocturna. Há descrições do Frágil, mais distantes e analíticas, que o referem como poiso elitista de pós-modernos, em moldura de design exigente e decadente. Parece quase lúgubre assim visto, como aquelas fotografias a muito preto e pouco branco, em ângulos esforçadamente enviesados que então víamos publicadas na City francesa. Mas o Frágil que eu conheci e onde vivi noites que hoje em dia me parecem todas coladas umas às outras, como o Inverno na Islândia, não era nada disso. Continha alegria. Nalgumas noites, explodia mesmo em imensa alegria. Nós éramos novos, agora já íamos fazer 20 anos e o mundo inteiro estava a acontecer–nos à frente. Estávamos famintos de universo e, naquele momento embriagado, o universo era o nosso. Ali, existiam criaturas planetas, personagens estrelas e seres satélites. Nós queríamos ser estrelas se bem que, graças à nossa insignificante experiência, ainda satelizássemos a maior parte do tempo. Mas tudo o que queríamos era brincar à via láctea. Excitávamo-nos com as roupas que iríamos luzir, como se o nosso futuro dependesse disso. Intrigávamos bastante, que era uma forma de classificarmos o mundo. Bebíamos mais ou menos, consoante o fundo dos nossos bolsos. Apaixonávamo-nos numa bicha para a casa de banho, traíamos quando a porta se trancava. Discutíamos para nos abraçarmos. Beijávamo-nos como quem ri, ríamos como se beijássemos. E, claro, dançávamos como se voássemos. 

Provavelmente, terei sido algures infeliz no Frágil. Mas não me lembro. A nostalgia é uma borracha mágica para verdades atrozes. E a memória uma fantasia jamais cronológica, graças eternas por isso. Distingo hoje apenas momentos muito nítidos numa época que ao longe parece essencialmente difusa, salpicada de purpurinas. Sei que foi no início que, as luzes de casa finalmente apagadas, preparava a fuga como quem escapa de Sing Sing. Estendia um travesseiro sob os lençóis, vestia-me no silêncio possível e, de sapatos pela mão, saía pela porta da cozinha, que deixava encostada. Descia até ao andar de baixo para evitar a campainha do elevador moderno e na rua, entre o medo e a excitação, corria. E tudo era possível até o dia raiar. Era possível, então, descer ao Conde Barão e alongar impossivelmente as noites. As Noites Longas eram o mais improvável e verdadeiro dos lugares. Aquele palacete já então estonteantemente fanado e decadente acoitava, a partir de dada hora,
noctívagos de todas as paragens. Dançava–se até Glenn Miller (juro, juro, juro) no salão escalavrado, ceava-se lá em cima numa cantina manhosa de néons e azulejos. O armário dos troféus, merecia-o todinho o Zé da Guiné, o homem mais janota da cidade capaz de arregimentar tantos pós-tracinho- -qualquer-coisa, cotovelos presos nos prés que éramos nós, os outros todos. 

Um dia, começou a haver vida para além do Frágil, no Bairro Alto. Os Pastorinhos, essa capelinha de poço de dança minúsculo e enfurecido. O Sudoeste, tentativa cor-de-rosa que jamais chegou ao rubro. O Targus, pujante de jornalistas sentados em bicos dos pés. Ah, pois, existiam territórios no Bairro Alto. Tribos de jovens turcos e índios de penas na cabeça. Uns fotografavam para o Mais Semanário, outros escreviam no Independente. E picavam-se muito que, quando se procura afirmação, geralmente, encontra-se confrontação. Até ao dia em que os Romeus e as Julietas traem os Capuletos e os Montechios e tudo acaba em festa. E a festa acontecia agora em Xabregas. Uma viela escondida até à entrada, um armazém de chão de terra batida imenso, um sótão de madeira secreto e inesperado. Nada mais. Porém a primeira nuvem amorosamente química pousara sobre nós, transfigurando o lugar e os seres, ateando uma convulsão emocional. Estupidamente feliz, loucamente inebriada. Continuávamos a dançar, agora com os braços no ar.

Depois disso, o que aconteceu? Crescemos, obrigatoriamente, e continuámos a sair noite fora. Como? Deixem passar mais uns aninhos e logo vos digo o que a memória, a sedutora de voz maviosa, me sussurrar então ao ouvido.

3 Responses to “Alegria”


  1. 1 Ricardo Arruda

    Catarina,

    Adorei o texto como sempre. O Frágil foi um sonho, um momento único, daqueles momentos em que todas as energias cósmicas parecem alinhar-se para criar algo unico e irrepetível.

    Entrei pela primeira vez com 13 anos (que horror, ainda usaria babete) e vivi lá o final dos anos 80, a transição dançante de Lisboa dos anos 80 para os anos 90 até a festa gloriosa do décimo aniversário em 1992. Depois em 1995 parti para Amesterdão, Nova Iorque e agora Londres, mas ficou sempre a memoria daquele tempo e energia únicos.

    Gostava muito que um dia se publicasse em Portugal um livro sobre o Frágil – a historia, as fotografias, o retrato de uma época, de um tempo. Se os americanos publicaram tantos livros sobre o Studio 54 e os espanhóis sobre a movida, porque não só um livro sobre o Frágil para que não se perca na historia (como tanto passado se perde em Portugal)? Fica aqui o meu repto para que você ou alguém mais com esta prosa encadeante possa um dia escrever esse livro.

    Abraço,

    Ricardo

  2. 2 CarlosL

    Olá Olá,

    Fantástico. Pela escrita e por me (re)lembrar do Frágil.
    Foi também por volta dos 16 que lá fui pela primeira vez, já lá vão esses e mais uns anitos…
    É sem dúvida um espaço que marcou a noite de Lisboa e a ideia do livro merecia uma tentativa – pelo menos isso – séria de ser realizado.
    Tenho a certeza que se conseguiriam encontrar contributos (enquanto a nossa memória nos permite lá chegar…) para mais do que um volume.
    Mas lembrei-me também da famosa tasca na porta em frente, com um excelente fado pela voz da dona, depois das portas fecharem – quem se lembra no nome?

    Abrç

    Eu

  3. 3 Luisa Melo

    Finalmente gostei de um texto da Catarina Portas, honesto como sempre mas com um entusiasmo ainda mais sinsero.
    Obrigada

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