A porta está só encostada

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Sobre o amor já tudo se disse, sobre a falta dele é que não.

Liguei o computador para escrever sobre o amor. Vinha cheia de ideias, sentimentos, frases tão feitas e tão inspiradoras que nem o nevoeiro-à-D. Sebastião que paira sobre Lisboa as conseguiria dissipar. Até que me deparei com a folha em branco, o cursor a piscar, insistente, a pedir palavras. E percebi que isso era o mais fácil. Escrever sobre o amor, viver com amor, acordar e dormir com amor, é o mais fácil. A partir do momento em que se tem, é tudo de uma facilidade relativa. Difícil é viver sem ele.

Nada de equívocos, nada de vozes contestatárias. Partilhar a vida – sei-o eu, sabemos todos -, não é pêra doce. Não é com moeda ao ar que se decide quem vai primeiro para o duche de manhã, quem trata da loiça, quem leva o cão à rua quando os termómetros mal roçam aos valores positivos. Não é de cara alegre que se dá o braço a torcer, que se engolem sapos do tamanho de prédios de três andares, que se ensaia um pedido de desculpas. Não baixa em nós, subitamente, um manto de altruísmo que faz com que a divisão e a partilha se transformem na oitava maravilha (no tempo em que só havia sete, agora perdemos-lhe a conta), operações tão simples de realizar que até dão gosto.

Ter amor, viver com amor, fazer com que as coisas resultem, dá trabalho. Chatices pegadas. Discussões de bater com a porta. Ralações que nos levam minutos de vida saudável. Mas, não me lixem, não é, nunca será pior, que não ter ninguém. Já se sabe que há quem goste, quem viva assim por opção, sobre esses estamos conversados. Mas querer e não ter, procurar e não saber onde se encontra, viver com a solidão como inquilina, não é coisa que se deseje por tempo indeterminado.

É boa a sensação de ter a casa por nossa conta por um dia, uma semana. É bom pôr fim a uma relação que nos consome, ficar em silêncio. É aceitável jurar a pés juntos que não nos voltaremos a meter noutra, pelo menos enquanto a memória ou dor causada pela última ainda estiverem demasiado avivadas. O problema é que passa. O chavão que ninguém quer ouvir, sobretudo quando tem o coração mais passado que carne picada, faz sentido: não há nada que o tempo não cure. Mesmo que não se saiba o que fazer com esse tempo. Pior, mesmo que não se saiba quanto tempo dura esse tempo. Há sempre um dia que se acorda e já passou. E estamos, de novo, disponíveis no mercado das relações. Mais velhos, menos fantasiosos, mais experientes, mais de pé atrás, mais ou menos disponíveis, mas de novo no mercado. E a roda volta a girar.

Não sou uma descrente. Não digo, como escreveu o Miguel Esteves Cardoso numa crónica tão fatalista quanto brilhante, que o amor fechou a porta. Que já ninguém se apaixona de verdade. Que já ninguém quer viver um amor impossível. Que já ninguém aceita amar sem uma razão. Que a paixão, que deveria ser desmedida, é na medida do possível. Que os namorados de hoje são embrutecidos e cobardes, incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia. Isto tudo disse ele, génio das palavras, não eu. Se calhar é porque tenho amor na minha vida, estou na fase cor-de-rosa. E porque vivi ainda pouco, mas o suficiente para saber que a porta do amor nunca se fecha. Está é encostada. Pelo menos, dá-me mais jeito pensar assim.

É preciso já ter vivido com amor, com paixão estúpida, para saber como é a vida sem eles. Para lhes dar valor quando nos entram pela porta só encostada, quase sempre sem se fazerem anunciar. É preciso já ter sentido vontade de morrer – que é diferente de sentir vontade de nos matarmos, que amores à Romeu e Julieta não há assim tantos. É só aquela coisa de não se estar bem em lado nenhum, de ver o amor em todos os sítios menos ao nosso lado. Aquela coisa de não ter vontade de saltar da cama. A sensação que há uma nuvem cinzenta localizada em cima da nossa cama, a largar chuva dia e noite. Não ter fome, não ter frio, não ter nada. Só aquela bola imensa que vai da garganta ao estômago, que não desaparece nem por nada. E a certeza, tantas vezes absoluta, que nunca mais se voltará a ser feliz, intercalada com a outra certeza, aquela que diz que assim é que se está bem, num processo de verdadeira esquizofrenia que vai do riso à lágrima em menos de três segundos.

Viver sem amor, com a alma em suspenso, não é mal que se deseje a ninguém, (não vá o feitiço virar-se contra o feiticeiro, e depois é que são elas). Porque, em bom português, é uma merda. Devia constar dos censos e tudo. Gostava que as pessoas que mandam nisto se dedicassem a ver quantas pessoas vivem sem amor. Quantas são menos produtivas à conta disso. Quantas encarecem o sistema nacional de saúde, com depressões, ataques de pânico e afins. E quantas é que não prefeririam uma cara-metade a um aumento de salário. Chegue eu um dia ao governo e uma das primeiras medidas será essa: amor para toda a gente, dê lá por onde der. 

O amor faz falta pelas coisas mais comezinhas. Para ter alguém com quem ir almoçar. Para provocar uma discussão quando a vida corre mal e se quer descarregar em cima de alguém. Para festinhas na alma. Para dividir as contas. Para mostrar à família que, afinal, há alguém que nos pegue. Para se poder usar um vestido de noiva. Para se ter um ar respeitável e acabar com a imagem de estroina. Para combater o medo do escuro. Para ter sexo com frequência. Para ter sempre um ombro onde chorar. Para nos sentirmos completos. Não é isto, tudo isto e ainda mais, que dá sentido à vida?

Longe de mim a postura messiânica, estar para aqui a pregar das virtudes do amor. Cada um é como cada qual. Se calhar há mesmo quem nunca vá encontrar alguém. Se calhar há mesmo quem nunca tenha conhecido o amor e não precise nem queira. Se calhar há mesmo quem hasteie a bandeira da solidão e a faça abanar ao vento, orgulhosamente. Se calhar há quem não precise de mais companhia que da dos livros, dos filmes, de um cocker spaniel. Mas eu, que tenho amor e que sei como é não ter, não quero andar para trás. Que ninguém me tire os beijos, os amuos, os abraços, as discussões, a contagem de segundos até o ver outra vez. E como eu há muita gente. É por isso que, a quem vive com as dificuldades típicas de quem não tem amor, reforço que a porta está só encostada. Que o tempo, aquele tempo, vai passar, e o amor não tem por que não entrar aos atropelos. Que “o amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita. Não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar. O amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe”. Diz o MEC. E digo eu.

7 Responses to “A porta está só encostada”


  1. 1 mr. moustache

    este artigo está top!!

  2. 2 lover boy

    Não está só top… Está brutalmente bem escrito.
    Mr. moustache ou será gipsy? :P

  3. 3 Cláudia

    Fantástico!

  4. 4 marisa mimi

    muitissimo bem sentido e transescrito.obrigada por publicares o que tantos de nos sentimos.continua…………por favor!

  5. 5 joana

    Estava a precisar de ler isto
    Muito obrigada

  6. 6 immfel

    Muito bem escrito e reflecte aquilo que nos vai na alma embora quase sempre tenhamos dificuldade em passar para o papel. Parabéns.

  7. 7 Tiago Garcia

    Este texto foi-me sugerido por uma amiga que é das pessoas mais dependentes de “amar” que conheço. Ela adorou este texto. Diz que se revê imenso nele. Eu não. Não é que não goste do texto, mas, com o maior respeito pela sua sensibilidade, acho que tem uma visão algo restringida e interesseira sobre o tema.

    Há muita gente que vive sem depender de ninguém, sem ter uma relação amorosa sólida, sem sequer amar – da forma a que se refere – alguém e não é por isso que estão ou sentem-se sós ou com algum vazio na vida. Há quem saiba almoçar, viajar, viver sozinho, mas sem solidão e, garantidamente, sentem-se felizes. Há pessoas que têm/encontram/recebem tudo o que referiu como sendo resultado do amor sem o terem e não vivem pior por isso. Algumas delas têm, contudo, a porta bem aberta, mas não andam por ai a sofrer porque ninguém, que por ela passa, fica.

    Ninguém é menos produtivo ou adoece por não amar. O problema, a verdadeira causa da (pseudo-)depressão já lá está, dentro dessa pessoa. A falta de alguém – ou, muitas vezes, de amor próprio – apenas amplifica fragilidades.

    Acredito que o verdadeiro amor chega – se chegar – quando uma pessoa encontra equilíbrio, satisfação e realização pessoal pelo seu pé, sem depender de terceiros. Amor a sério, para mim, só existe quando duas pessoas chegaram a um ponto bem avançado de desenvolvimento pessoal. Essas pessoas acabam verdadeiramente por saber o que são e o que querem. Sem condescendias, sem facilitismos, sem acomodamentos, sem renunciar àquilo que, bem lá no fundo, sabem que desejam e não abdicam por ninguém ou por qualquer ideal de conforto. Um dia conhecerão – ou não e a vida continua – alguém que, para além do deslumbramento a que muitos chamam de amor, os conquistará e não será por assegurarem chás e torradas numa tarde mais feia de domingo.

    Para que nos entendamos, gosto de muito dessas tardes e de tudo o mais que não quer que lhe tirem. Mas isso, para mim, não é amor. Isso, para mim, é tudo e apenas o que se recebe quando se anda a procura de amor porque sem ele não se sabe viver.

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