O Outro

Capítulo anterior: Zé Miguel tem 25 anos. / Nasceu em Viseu e estudou direito em Coimbra. / Já em Lisboa, frequentou antropologia. / Quer ser designer gráfico. / Vive no Bairro Alto. / Trabalha num call center, a recuperar dívidas. / É noctívago. / Numa das saídas, conhece o dj Kaló e apercebe-se de que falta pouco tempo para a festa do Lux. / Quer ardentemente ir, mas não tem convite.

(o capítulo anterior pode ser lido na íntegra aqui)

[Folhetim] II. A Fenda

“Alo tamos no adamastor a beber jolas ta 1 tarde linda bora ai”.

Quando recebeu o sms da Tânia, Zé Miguel estava sentado na fila de trás da aula de matemática, a ouvir umas coisas abstractas das quais se sentia muito, muito afastado, delineando estratégias para arranjar um convite para a festa. Já tinha tentado a vulgar pedinchice; tinha ido ao Lux no sábado anterior, a ver se dava nas vistas de qualquer maneira. Metera conversa com um barman, com um segurança e com todas as pessoas com mais de trinta anos que tinham sorrido para ele. Dançara furiosamente à frente do DJ. Por fim, em desespero, tinha ousado sentar-se na mesa redonda do andar de cima, à espera de conhecer alguém importante. Mas nada. Nem convite, nem conversa. Agora, sentado nas cadeiras duras da ETIC, olhava o tecto, ruminando hipóteses. A > B = C… mas quem será o A?

O sms da Tânia veio despertá-lo. Passada meia hora, esfalfava-se pela Salvador Correia de Sá acima, ao encontro dela.

A Tânia era a companheira de casa. Continuava a estudar antropologia, mas tinha muito tempo livre, que entretinha no eixo Bairro Alto/Adamastor, alternando com umas idas à praia. Andava sempre por ali, muito acompanhada por gente a chegar e a partir, a falar de Goa e de Trancoso, do calendário Maia, e da última festa e da próxima. 

Zé Miguel não sabia bem onde ela arranjava o dinheiro para viver, e parecia–lhe impossível que viesse todo daqueles trapos indianos que ela, quando se dava a esse trabalho, vendia a umas lojas de tias étnicas. Mas também não queria investigar muito. Demais, a Tânia era avessa a falar em dinheiro, como a quase tudo o que se relacionasse com trabalho.

— Olá, então, tá-se bem? Senta-te. Vai buscar uma cerveja e traz uma para mim. Olha, é a Inês e o Gustavo, chegaram agora de Barcelona.

Zé Miguel disse olá, indeciso em sentar-se na relva. “Hum, mais uns que vão dormir na sala, hoje. Espero que o cão não seja deles.”

Esteve ali um bocado a apreciar a tarde e a magicar. Aquilo não era gente que pudesse resolver-lhe o problema, e a conversa não lhe interessava nada. Ia ouvindo: “Boom Festival”, “Zambujeira”, “praia liiiinda”, “reiki”… até que ouviu o seu nome dito pela Tânia:

— O Zé Miguel não é muito expansivo. Anda um bocado perdido, precisa de encontrar o seu eu, tás a ver?

Os outros dois abanaram a cabeça, compungidos. Zé Miguel olhou para a Outra Banda. Pfff! Voltou-se para a Tânia:

— Ó Taniazinha, então parece que o mundo ai acabar em 2012? No outro dia estive a ver um documentário muito interessante sobre o calendário Maia… Já pensaste o que é que vais fazer?

— E tu, já arranjaste convite para o Lux? Olha, acho que o vizinho de baixo deve ter. – E riu, meio pedrada, encolhendo os ombros, a piscar o olho para os dois de Barcelona.

— Ah… Acho que o meu pai é que recebe… – acordou subitamente a Inês. – Sim, sim, ele costumava ir ao Frágil.

Zé Miguel levantou-se, sacudiu a erva das calças e anunciou que tinha de ir trabalhar. Deixou os três a discutirem o fim do mundo e foi, resignado, aturar as vítimas do fim do mundo capitalista, mais os seus créditos malparados.

Quando ia a percorrer a Rua Marechal Saldanha, ainda a pensar na Inês, no pai e no vizinho, teve uma súbita inspiração: e se fosse espreitar a caixa do correio do vizinho? A Tânia era bem capaz de ter razão, e o do primeiro andar estar mesmo na mailing list. Lembrava-se de o ter visto passar à frente de todos, com um ar muito decidido, enquanto ele esperava na bicha para entrar.

O prédio tinha um hall esconso. Arredou a bicicleta da Tânia e o caixote do lixo e meteu a mão na fenda. Não cabia. Empurrou. Esfolou as costas da mão, mas conseguiu extrair dois envelopes: um das finanças; outro, mais espesso, com ar de convite. Era, de facto, um convite, mas para uma loja de roupa pop no Príncipe Real. Bah… Se ainda fosse para a Moda Lisboa…

Olhou para a mão direita, e lambeu os vestígios de sangue, pensando que tinha de usar a cabeça.

Nos dias seguintes, Zé Miguel oscilou entre a esperança e a resignação despeitada – “também o que é que é uma festa na vida de uma pessoa”, dizia ele à Tânia várias vezes por dia. Ela batia-lhe no ombro e dizia “pois, pois, claro, relaxa, se calhar andas a comer muita carne”.

Um dia houve em que, ao sair de casa, viu a mala do carteiro no chão, no degrau da porta. Pôs-se a olhar lá para dentro. Olhou em redor. Não havia ninguém. Meteu a mão, ainda aleijada, e vasculhou um bocado. Apalpou, à procura de uma carta mais volumosa que pudesse ser um convite. Só livros da amazon. Porra, cambada de intelectuais.

Chegou ao dia da festa sem solução. Estava tão deprimido que nem foi trabalhar. Passou o dia no quarto, em frente à televisão, de cuecas e meias. A hora aproximava-se.

Por volta das sete da tarde, sentiu a Tânia entrar.

— Oi! Ih, que fumarada! — disse pela porta entreaberta. — Nem imaginas! Estive agora no Adamastor com a Inês… sabes, aquela minha amiga de Barcelona… E vou à festa do Lux com ela! O pai não quer ir, e o Gustavo diz que também não, que não gosta da música, não passam progressivo. E então vamos as duas. Tu sempre vais?

Zé Miguel mandou-lhe um olhar oblíquo. Virou-se para a televisão e mudou de canal. Ela fechou a porta e foi-se arranjar para a festa, aos pulinhos, a cantar
“le freak c’est chic”.

Deram as dez horas. Resolveu sair de casa, para não ouvir mais telefonemas da Tânia a combinar encontros e adereços.

Arrastou-se até ao Clube da Esquina. Pediu um vodka. O DJ passava “There’s a Light That Never Goes Out”, versão
Schneider TM. Ao lado, ao balcão, um homem alto e magro, de nariz comprido, curvava-se sobre um whisky e cantarolava “take me out tonight”. Olharam-se.

— Esta música é muita fixe — arriscou Zé Miguel.

— Gostas dos Smiths?

— Sim, mas gosto é desta versão.

— Hum… bem me parecia que não era o Morrissey a cantar.

Continuaram a beber, e a conversar. Ele era poeta, e nostálgico do antigo Frágil, que o Zé Miguel nunca tinha conhecido.

Já estavam meio turvos (o Zé Miguel bebendo para esquecer), quando o poeta começou a olhar para o relógio e a dizer que tinha de ir andando. Não queria deitar–se muito tarde, e ainda ia passar no Lux.

Zé Miguel ficou imediatamente sóbrio:

— Vais à festa?

— Sim. Não vais?

— Não tenho convite.

— Não importa, vem comigo. O meu convite serve para dois.

— É mesmo? — com a mão aleijada, agarrou no braço do outro e apertou-o, comovido. — Eu pago o táxi!

E foram. No caminho, o poeta divagou em nostalgia. Falou do Frágil dos anos 80, de como tudo era pequeno e familiar. Olhava pela janela, fazia silêncios. Agora já não conhecia ninguém. Zé Miguel ouvia, quase esquecido da festa.

Quando avistaram Santa Apolónia, e a discoteca ao fundo, viram um grande volume luminoso, como uma onda, a tapar a porta. Saíram do táxi precipitados, espantados: eram umas enormes pernas de mulher escancaradas para os receber. O poeta riu, e não deixou escapar a oportunidade:

— Olha! Vês como pensam em tudo? Não tinhas convite, não é?… E lá vamos entrar pela fenda da porta!

(Continua)

1 Response to “O Outro”


  1. 1 ANS

    Esta história é verídica ?

    Pelo menos é cativante . ;)

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